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B I B L I O G R A F I A

Vitorino Nemésio
Texto de Vasco Graça Moura

 
 

 

 

O BICHO HARMONIOSO: RESSONÂNCIAS
(EFEITOS ACÚSTICOS EM VITORINO NEMÉSIO)


Foi em 1961 ou 1962, andava eu pelos meus 19 ou 20 anos, que adquiri o volume Poesia (1935-1940), de Vitorino Nemésio, acabado de publicar pela Morais Editora no seu Círculo de Poesia. Na altura não prestei grande atenção ao primeiro dos livros nele incluído, La Voyelle Promise. Mas os outros dois, O Bicho Harmonioso e Eu, comovido a Oeste, passaram a contar-se entre as minhas leituras poéticas favoritas e reiteradas, em especial o primeiro. As experiências poéticas de tipo heideggeriano, a relação entre o verbo, o mundo, a morte e a escatologia, a oscilação entre a ascese individual, a compreensão da realidade, a exaltação religiosa e a pulsão erótica, conquanto dimensões essenciais do universo nemesiano (a última delas, de resto, só tardiamente revelada em pleno), acabavam por me interessar menos nessa altura e foi bastante mais tarde que procurei conhecê-las melhor e reflectir sobre elas.

O Bicho Harmonioso lembrava-me o título de uma suite de Händel, O Ferreiro Harmonioso, e mesmo agora, no ensejo de recordar essa experiência, o termo que me ocorre para caracterizar a arte poética de Nemésio, tal como a vivi nessa ocasião, é o de “ressonância”[1]. Os processos de Nemésio faziam-me supor que eram exactamente ressonâncias como que de entrada e permanência em vibração de um corpo sonoro na escrita poética, e também encadeamentos de harmónicas e de outros efeitos do som enquanto fenómeno ondulatório, que o poeta procurava, envolvendo nessa acústica muito pessoal tanto a materialidade fónica e vibratória como a dimensão semântica e metafórica, no trabalho e achamento das rimas, das consonâncias e das dissonâncias, na combinação de sonoridades e sugestões, nas dinâmicas rítmicas propostas, nas alternâncias e bruscas rupturas prosódicas, nas imagens e alusões musicais, até nas hiper e hipometrias do verso e noutros desequilíbrios tecnicamente conseguidos que lhe serviam para acentuar o que pretendia dizer com alguma propensão expressionista.

Entre a densidade do canto e a sugestão de instrumentos musicais, o coração da própria sonoridade vinha assim desde o nervo das coisas a reverberar pelo mundo concreto fora e a combinar-se, como uma linha melódica que vai sendo sucessivamente harmonizada ou sobreposta a outras, com efeitos mais esperáveis, mas igualmente de uma grande beleza eficaz, da combinação de mar, insularidade e memória, das ondulações da distância, das vagas e dos navios, das interacções e dialécticas de saudade e presença, ansiedade, carência e plenitude, solidão e partilha, das contraposições entre tempo do divino interpelado e tempo efémero e vivido da condição humana individual neste mundo. Mais tarde, vim a perceber melhor esses processos tão característicos do poeta.

Este homem, pensei então, não quer saber da rigidez de teorias ou receitas literárias e engendra e inflecte os seus próprios recursos técnicos como lhe apetece em cada momento. A sua liberdade poética oscila muitas vezes entre a utilização e a transgressão dos cânones, mas sempre ou quase sempre, com uma cuidada modulação fónica e rítmica nas suas próprias asperezas. Nos metros regulares ou nos versos livres e naquilo que em Nemésio é mais marcadamente derivado do Simbolismo, há sempre uma preocupação de ligação ao concreto, de tensão vigilante entre a percepção do real e a palavra que pode exprimi-lo, de transfiguração do quotidiano em intemporal, de relação de parentesco ou proximidade familiar a figurar-se repetidamente como pista para a evocação angustiada de um mundo perdido onde a identidade pudesse verdadeiramente fazer sentido; e se há um propósito de trocar chãmente em miúdos as grandes palavras e tiradas enfáticas de alguma poesia do tempo, há também um orfismo muito próprio na procura de uma auto-diluição, a partir do “canto necessário”, “em som e no ar que o guardasse”. Daí uma percepção da existência de contiguidades inúmeras entre as coisas materiais e imateriais ou imponderáveis, entre a razão e os sentidos, entre expressão poética e emoção vivida, o que explica a ocorrência das ressonâncias e “transvibrações” mais variadas, tudo isso também como um fenómeno ondulatório a propagar-se e a amplificar-se de poema para poema seja no que respeita à realidade dos referentes físicos sólidos, líquidos e gasosos, seja na expressão de estados anímicos, intelectuais e emotivos: “Musical, todo fogo, em mim me vou e expando” (“O canário de oiro”).

Ficou-me ainda a impressão de uma poética cuja carga simbólica se investia por sequências expansivas, como ondas concêntricas a partir de um núcleo irradiante. Alguns casos são absolutamente evidentes, como a metáfora do ovo ou da ilha no meio das águas. E também o “canário de oiro” se tornava o animal simbólico e fabuloso a preencher o próprio ser do autor em osso, carne e sangue e, como medida e desmedida fulgurante do canto, a passar muito para além desses limites individuais. Dando-lhe um destaque especial, Nemésio referia-se a ele no final do seu tão importante prefácio ao volume de 1961. Mas notemos ainda que o canário de oiro se recorta contra todo um bestiário feito de alusões e metáforas zoológicas no mesmo poema: águia, milhafre, “aves de parabólica plumagem”, pombas, cordeiras, lobos, “a cordeira preta, a do velo maior”, “catorze cavalos, todos de músculo solar”...

O registo musical passa a aliar o canto da ave ao emergir e pulsar dos afectos, do fogo verbal das harmonias, das misérias do bicho da terra, das afinações e desafinações desferidas a partir do seu “diapasão de ferro”, onde perpassam anjos, vindos de Rilke, mas aqui “de matéria nenhuma e de toda a arrogância”. Essa música é uma arte do tempo que no tempo se consome e resolve, ainda sob uma aura romântica de frustração da expectativa de um almejado “alto destino de poeta” que vem desde o primeiro poema, “O bicho harmonioso”, no seu buraco vil, onde a noite “faz muito bem em vergar uma gruta sem ecos”. Essa gruta é todavia bem mais sonora do que se diz no lugar inicial e acaba por ter ecos sucessivos e reverberantes: passa a concha pacientemente segregada, ou a uma aura de percussão das lapas “de que tirava depois, como de castanholas, / Um som qualquer para acordar e desentorpecer os caminhos” (“Sonho vivo”), e reconduz-se ao imo do búzio cheio de vozes remotas (“Búzio velho”) ou “búzio de sonhar, de boca estreita, / onde a maré da minha infância se perdia” (“Os Cardos”).

É assim uma gruta que podemos considerar transformada em poço para um Narciso que, diferentemente da figura da mitologia grega, não se contenta com o seu reflexo numa superfície espelhante e prefere ver-se em ressonâncias vindas a pulsar desde as profundezas do ser, como em “A furna”: “Debruço-me comigo no meu poço / – Tudo a fundo sonoro e emparedado – / E, rente aos tampos, ouço, ouço / Meu coração aproximado.” Afinal, na furna, outra modalidade da noite, o eco “é uma humidade”, calando o minério “Da minha estreme poesia. / Cala-o para que eu próprio vá batendo, / Dos martelos comuns abandonado, / O possível no opaco de atro urdume”.

Depois esta percussão em ecografia continua na “Ode ao mar”: “Lá, uma vaga dera / Uma pancada rara / (A vaga minha madrinha), / não sei com que força ou vara: / sei que a pancada vinha / direita ao meu coração, / que ainda hoje a reproduz.” Acrescentemos que, em “Outro testamento”, o efeito mais importante de ressonância é perfeitamente explicitado neste outro verso que comporta um dos sentidos fundamentais da poética nemesiana: “Pois quando me comovo até o osso é sonoro”.

Decorridos 50 anos sobre as minhas primeiras leituras de O Bicho Harmonioso, essa continua a ser a primeira coisa que me toca quando volto a pegar neste livro.


 

NOTA

1. Recorro ao Dictionnaire des Mots de la Musique de Jacques Siron (Paris, Outre Mesure, 2002) para recapitular uma definição útil: por ressonância entende-se a entrada em vibração passiva de um corpo sonoro por um excitador exterior periódico cuja frequência é igual a uma das frequências próprias do corpo sonoro (= frequência de ressonância); após extinção da fonte exterior, o corpo que ressoa continua a vibrar”. Em sentido menos estrito, pode ainda falar-se de reverberação, prolongamento ou amplificação dos sons em todas as frequências.

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