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O estado da poesia
Armando Silva Carvalho

 
 

DOIS PONTOS

 

Um

Para já, e na linha duma justificação no fundo um tanto simulada, confesso que me custa a escrita destas prosas. A idade não perdoa, os tempos só repudiam, e as memórias o que fazem é toldar de luz impura os seus tristes e desfigurados fantasmas. E eu já ando nisto há mais de cinquenta anos. E é como se andasse num circo em que as palavras devem ser sempre as fatais contorcionistas do programa. Um pouco mais de recato no meu canto (canto enquanto lugar e não verso ou poema, fique claro) era na verdade o que se me impunha.

Em teoria, de que modo tenho eu a ver com o que se fez, se faz ou se fará no mundo sempre dúbio dos poemas? Nunca fui crítico, e muito menos académico. E cada vez vou reduzindo mais as já parcas leituras. Aqui nesta cidade onde me refugiei há anos nem sequer há livros nem cheira a livrarias. E enquanto o Herberto Helder pode escrever que na ilha da sua infância se envolvia “na ordem ininterrupta das magias”, eu aqui nesta península que me coube na velhice, só sei que enfrento uma rochosa, empedernida visão do mundo, contra a qual o mar se insurge e batalha no inverno e sobre a qual me obrigo a desdobrar a alma por duvidosas névoas que acabam quase sempre em metafísicas.

Já foi dito e redito em termos da didáctica mais rasteira uma trivialidade formal: teria surgido um maior rigor no mundo dos textos poéticos na segunda metade do século passado por causa das frívolas metáforas e imagens, exauridas, numa inflação cada vez mais requentada. Mas depois vieram outras gentes que duvidaram desse mundo e se puseram a frequentar outros ditos menos recomendáveis. E que entre tabernas e bares, descrenças em ontens que choram, hojes que riem e amanhãs que cantam, fizeram despontar a graça da lírica com toda a inocência duma primeira vez.

Mas não há primeira vez, é claro, e muito menos nessas arenas poéticas. E não é para me gabar ou é, mas também eu nesses anos sessentas me intrometia na experiência do real e punha o comezinho frigorífico doméstico a demonstrar o frio às donas de casa e aos pensadores diários. Foi tempo. E todos os tempos velhos foram novos modos para a diversidade dos discursos ou desassossego dos espíritos.

“Estou estendido no meu leito de morte,/ rodeado de chás da Malásia e ovas de estrujão./ Tenho as mãos fracas./ Mal consigo abanar os cubos de gelo no copo./ Queria, talvez, mais carne, mais sol e mais sabor./ Respiro por enquanto por um tubo./ Transpiro Bushmills.” São versos de Golgona Anghel, um nome que nada me diz em português mas que traz à tona os sons gelados duma linguagem crua, arrepiada, como eu gosto, sem ênfases, nem vontades de tornar a própria dor académica, ainda parafraseando o Herberto.

Deixemos pois de lado as cátedras e o seu respeitável labor confiscatório e sentencioso. Os poetas novos, logo que se sentem mais ou menos a salvo, vão-se perfilando ao lado dos poetas velhos, trazendo as suas novas linguagens e linhagens, os seus artefactos ainda tintos do desejo ou do seu reverso acabrunhado, repetindo-os numa exibição circence quantas vezes dolorosa e grave de malabaristas E às vezes muito untada também pela má-língua. Sabemos todos. E não se fala mais nisso.


Dois

Quando vem à fala o estado actual da crítica de poesia lembro-me sempre do Carlos de Oliveira, dum texto seu sobre as feiras do livro. Seriam sempre mais pobrezinhas, claro, de ano para ano, as ditas feiras, mas sempre vistas pelo lado pessimista-resistente desse grande poeta do verso rarefeito e rigoroso. Se bem me recordo, havia nesse escrito a vontade de não deitar abaixo o que sempre tremia nos seus alicerces. Diz--se que cada vez há menos editoras a publicar poesia. Mas ainda há dias li o nome duma nova colecção criada por uma jovem editora. E afinal onde se escreve hoje sobre poesia? Os suplementos chamados de cultura chegam-nos às mãos a abarrotar de grupos musicais e da sua filosófica imposição por via da transcendência, e certamente por descuido trazem de longe em longe nas coluninhas do fim a esmola duma crítica a um livro de versos. Mas atenção: resistem ao longo do tempo as duas colunas do templo: a Colóquio e a Relâmpago, dignas, monumentais e exemplares nesta Europa comum e, citando pela terceira e última vez o Helder, burrocrata. E no meio disto, o António Guerreiro deve ser hoje o único, sim, o único neste país, a representar corajosamente o clássico intelectual, pontualmente, todas as semanas.

Não sei se é relativo ou elevado, comparativamente, o número de leitores de poesia nos dias de hoje. Não sei como eles se contam e de estatísticas não percebo nada. Não sei se existe medida para avaliar o grau de recepção, o estado de entendimento, o nível de adesão à pretensa qualidade dum texto dito poético. Chora-se, mata-se e esfola-se por formas tão diversas, ao fazer, ao ler, ou ao defender este ou aquele livro de poemas! Mas vejo, sinto ou pressinto que há sempre gente nova, longe ou perto de mim, a perguntar por si própria, pelo mundo, pelo destino. E por essas razões mais que suficientes pegam nas palavras, amestradas na sua firmeza, flexibilidade e contorcionismo, e procuram nelas uma resposta de espanto, fulgor, talvez sabedoria. A isso chamarei eu continuum poético. Futuro do poema.

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