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Catorze anos depois de ter surgido em 1997, Relâmpago dedica este número a Vitorino Nemésio, saldando assim uma antiga dívida para com um dos grandes poetas portugueses do século XX, que Luís Miguel Nava, patrono desta revista, lia e admirava profundamente, chegando a escrever um ensaio sobre a sua obra – ensaio esse que daria nome ao seu livro O Pão a Culpa a Escrita e Outros Textos (Lisboa, IN/CM, 1982).

Ao comparar a poesia de Nemésio com a dos seus contemporâneos, Eduardo Lourenço individualiza-a, sobretudo, através de um humor e de um espírito irónico que faziam falta na época da Presença, sem que por isso herdasse de Orpheu «a marca da consciência rebelde e prometaica da poesia moderna» (Tempo e Poesia, 1987, p. 174). De facto, o terreno onde mergulham as raízes dos versos de Nemésio é o de uma antiga e renovável tradição lírica, sem ter desejado ser propriamente aquilo a que se chama um autor de vanguarda. No entanto, a verdade é que Nemésio acabou por desempenhar um papel mais inovador do que a priori o seu perfil faria prever, desde logo porque a sua poesia – apesar das reminiscências biográficas – recusa ceder a um simples pendor confessional, ampliando a sua invenção verbal até atingir um alcance universal graças a um filtro que a mantém ciente da sua linguagem e que apazigua as expansões de um pathos ocasionalmente mais forte: «Tudo o que toco ou penso me faz mágoa, / Mas dizendo-o nos versos sosseguei.»

Operando uma discreta renovação na poesia portuguesa – Fernando Guimarães fala, a propósito de Nemésio, na «recuperação da dimensão imaginária da linguagem» (Simbolismo, Modernismo e Vanguardas, 1982, p. 90) – , a poesia de Nemésio manifesta a maestria de um estilo ágil ou elíptico, num tom coloquial que integra ritmos e expressões de raiz popular, sempre com um ouvido atento às mais estranhas imagens, cuja fantasia faz do seu universo quase o de um surrealista avant la lettre. Para lá de tudo isso, Nemésio preocupou-se sempre em ligar a poesia às coisas que o rodeavam, repudiando a pura abstracção conceptual, como nos diz na sua «Arte poética»: «A poesia do abstracto... / Talvez. / Mas um pouco de calor, / A exaltação de cada momento, / É melhor. / Quando sopra o vento / Há um corpo na lufada; / Quando o fogo ateou / A primeira fogueira, / Apagando-se fica alguma coisa queimada. / É melhor... / [...] / O flanco das coisas só sangrando me comove, / E uma pergunta é dolorida / Quando abre brecha. / [...] // Por isso, não: / Nem o abstracto nem o concreto / São propriamente poesia. / Poesia é outra coisa. / Poesia e abstracto, não...»

Por esta recusa se compreende a intensidade com que a escrita de Nemésio se associa aos elementos na sua pulsação vital, mesmo quando a sua reflexão se projecta para lá da materialidade ou da finitude de tais elementos. Essa necessidade leva-o a submeter os jogos intelectuais ou metafísicos ao contorno dos objectos palpáveis, criando um notável contraste de registos que se verifica em poucos autores. Leia-se, por exemplo, esta quadra – «Um ovo é como uma chave, / Mas só abre a vida às penas. / Apetece ser ave! / Ter as mágoas pequenas» – e veja-se como nela a palavra «penas» evoca os desgostos humanos e simultaneamente a penugem das aves quando rompem a casca do ovo. Digamos que em muitos dos melhores momentos de Nemésio coexistem o intelectual mais subtil e o sensorial mais imediato, de modo a que o leitor se deixe perturbar por tal mistura – uma perturbação adivinhada numa pergunta como esta: «Levo trigo à fome / De poesia, ao menos. / Quem porém mo come / Em pães tão pequenos?»

Constituído por ensaios e depoimentos de amigos, familiares, colegas, alunos ou estudiosos da obra nemesiana – para lá das habituais secções de poesia inédita e de recensões a diversos livros de poesia – , este número da Relâmpago – que inclui ainda uma excelente carta inédita a Miguel Torga – talvez contribua para renovar o interesse por esse homem multifacetado que evocamos como brilhante professor ou comunicador, crítico ou ensaísta, contista ou romancista, mas que era também, antes e depois de tudo, um magnífico poeta.

Para concluir, sublinho que, do meu ponto de vista, um dos maiores méritos de Nemésio residiu no facto de ter conseguido manter-se um «menino entre os doutores», como escreve o Prof. Machado Pires no seu depoimento – por isso houve quem, na Universidade, nunca chegasse a compreendê-lo. E é também isso que se desprende da sua poesia, não hesitando em valorizar uma dimensão lúdica que, de resto, a torna mais profunda do que a que lemos noutras obras consideradas mais «sérias». É que tudo talvez se resuma, afinal, a uma brincadeira de crianças:
«Até ao último fio / Poupei o dote divino. / O homem de Deus perdi-o; / Só salvei o menino. // Esse me leva e enche / Como uma onda do mar; / Minhas fraquezas preenche, / Que a grande força é brincar.»

FERNANDO PINTO DO AMARAL

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