Analogia e Dedos, o mais recente livro de Pedro Tamen, é composto por 35 poemas. Os seus títulos (que vão desde figuras históricas, religiosas ou mitológicas – que constituem o núcleo mais numeroso e significativo – até personagens literárias e do mundo das artes e mesmo árvores e animais) remetem-nos para uma das questões centrais do volume: a identidade. A epígrafe – versos de Quatro Caprichos, livro de António Franco Alexandre – parece anunciar esse assunto: “Não me digas quem és, quem foste, como sabes / a língua que se fala sobre a terra.” (p. 5). Os poemas dão conta de um movimento ambivalente em que, simultaneamente, há revelação e ocultação. A estratégia parece ser a seguinte: sou e não sou todos aqueles que enumero e pela boca dos quais formulo o meu discurso e construo a minha identidade. Tal pode equivaler a afirmar, com Borges, que sou todos e ninguém, enfim, que sou um poeta, um fingidor.
Os primeiros 20 poemas são escritos na primeira pessoa. É a figura referenciada no título que assume, digamos, o discurso do poema (a única excepção é “Inês de Castro”, pois é D. Pedro que a ela se dirige). Torna-se possível inscrevê-los directamente na tradição de uma poética da alteridade, funcionando como verdadeiros monólogos dramáticos. O poema parte de um facto histórico ou das características individuais da personagem em causa imediatamente reconhecíveis, que ganham sentido e amplitude no confronto com a informação de contexto (tudo aquilo que não é dito, que não precisa de ser dito) fornecida pelo título. Já os restantes 15 poemas comparecem na terceira pessoa ou as figuras em causa são directamente interpeladas pelo agente que se revela a voz que conduz e organiza o livro.
Em regra, cada poema expõe uma verdade universal, uma lição, a partir de um caso individual e concreto que serve de motivo, de ponto de partida. Há uma dupla dimensão de verdade e logro no confronto do indivíduo com a História ou o Saber. Veja-se, por exemplo, os poemas “César” e “Brutus”, nos quais há uma dimensão revelada que permanece inacessível à personagem, cujo juízo fica, por isso, prejudicado: “Morreu morrerá sem o sabor do aço / que o filho, se adoptivo, lhe daria.” (p. 27); “[…] Não era a vontade / que falhava, mas a própria mão, / o braço: nem para tal servia.” (p. 28). Por seu turno, em “Inês de Castro” é o rei o único depositário de uma verdade que escapou à História: “[…] Inês, amor, eu é que sei / que depois de rainha foste morta.” (p. 22).
Uma das questões que este livro evidencia diz respeito ao sentido do tempo, ao sentido da história e ao valor e significado das acções humanas. Em “Noé”, por exemplo, tudo nos surge como repetição: “Mas não é ser carpinteiro, / não é ser caminheiro, / não é ser marinheiro o que mais me inquieta. / Nem é poder esquecer / a pulga, o ornitorrinco. / O que mais me inquieta, Senhor, / é não ter a certeza, / ou mais ter a certeza de não valer a pena, / é partir já vencido para outro mundo igual.” (p. 12). O mesmo sentido de derrota antecipada, de auto-limitação imposta à história de cada um por um Livro mais poderoso, encontramos no poema “Moisés”: “Estava escrito que não vai o meu caminho / para além desse rio (que é outro, e não aquele / donde afinal parti). Anos e anos disse / o que ele me disse. / Já não tenho palavra. / Tenho cento e vinte anos. / O rio está ali, mas aqui ficarei. / Foi ele que o disse, o das coisas ocultas.” (p. 13).
Outro dos pólos de atracção deste livro é a relação, ou melhor, a oposição que estabelece entre a palavra, a nomeação, e a realidade. Assim acontece em “Linneu”. A lição a retirar parece ser a da redundância das palavras, do seu lugar sempre segundo face ao real. O poema abre com a seguinte afirmação: “A minha profissão é dar-lhes nomes.” (p. 10). Todavia, a concluir constata-se que não é dar (o que pressupõe a criação), mas sim dizer o verbo correcto: “Apenas digo nomes: tudo existe / muito senhor de si, / tudo existe insolente, / independente. // Não era necessário eu ter nascido.” (p. 10). Em “Herzog” podemos ler versos com um idêntico sentido: “A minha desforra são palavras. / Levanto-me de manhã amarrotado / pelo peso inclemente das mentiras / e vazo no real outro real / das letras que ninguém vislumbrará. / O pássaro que canta é uma palavra, / é uma carta escrita a este, àquele, / que me saiu do lápis da amargura; / tudo se refaria se jamais feita fosse / alguma coisa que a minha mão não desse.” (p. 14).
Estamos perante versos rigorosos e tensos, com o marcado sentido de equilíbrio e organização interna que caracteriza a poesia de Pedro Tamen. Há uma extrema preocupação com o ritmo e a musicalidade, a sonoridade dos versos. São muito frequentes as aliterações e as rimas internas, em regra como estratégias reforçadoras do sentido do poema. Creio que apenas um exemplo será suficiente: “Não insinuei o dedo no grelado / tufo? E não após rezei / o meu latim? E os pós que mandei / triturar, misturar e meter no anel / episcopal, papal, pois pois, anel / de ponta e mola, / agudo como faca, / para depois os vazar na libação final / nas taças que beberam / – não fui eu que os dei / para dar vida eterna?” (p. 11).
O eixo formal parece-me reforçar a componente lúdica desta poesia, bem como a sua condição menor face à realidade. A literatura é um jogo, divertimento, os seus caminhos percorrem-se em paralelo aos da vida, sem que exista qualquer elo de ligação. A literatura alimenta-se da vida mas não age sobre ela. E essa talvez seja a principal lição desse livro, como julgo ser possível inferir da leitura do último poema, “Tomás António Gonzaga”: “Quando a pura cura pinga / na chaga do coração, / desejo que não se extinga / a dor da separação // só para ter sempre à mão / essa espada que nos vinga / com o que resta da canção / do que nos corta e nos minga: / e assim, se vive e se dura / a dor da separação, / salva-se a literatura / – que não há mais salvação.” (p. 42).