Luís Quintais
<
 
RO EO CO EO NO SO ÃO O
 
“Il faut être absolument moderne”
G A S T Ã O O C R U Z
 

LUÍS QUINTAIS, DUELO, EDIÇÕES COTOVIA, 2004

A observação e o estudo de como a poesia evolui, de como a linguagem poética se modifica e os próprios objectivos da escrita do poema se alteram, levam-nos a olhar cada livro de poesia, ou cada poema, procurando encontrar uma dinâmica própria, um impulso futurista, que faz deles, quando essa energia existe, marcos no percurso que cada poesia, em sentido lato, traça dentro da sua língua.

Isto, que, nos tempos modernos, pareceu evidente até um certo momento do século XX, começou, entre nós, a partir dos meados de 70, a ser contestado em alguns sectores, para os quais a poesia se daria melhor com uma certa falta de ambição estilística e com a rasura de quaisquer sinais de invenção pessoal, do que com a vontade de inovação, coisa mal aceite por mentes antimodernas (por vezes, disfarçadas de pós-modernas), que terão pretendido mesmo desvalorizar a ideia de modernidade, num desinteresse por tudo o que pudesse representar a criação de um mundo construído, não através da utilização directa da vida e das suas emoções, mas como algo que existe apenas enquanto uso diferenciado da linguagem.

No ensaio, de 1919, “A tradição e o talento individual”, um dos textos fundadores de uma teoria da poesia moderna, e tão próximo daqueles, em prosa e em verso, em que Pessoa exprimiu os seus conceitos de poesia e de poeta (a começar pelo nunca de mais celebrado “O poeta é um fingidor”), T. S. Eliot disse, como é sabido, coisas definitivas sobre esta matéria, algumas das quais talvez valha a pena lembrar (uso a edição de J. Monteiro-Grillo, em cuja tradução colaborou Fernando de Mello Moser – ambos meus professores durante o período em que frequentei a Faculdade de Letras de Lisboa): “A crítica honesta e a apreciação dirigem-se não para o poeta mas para a poesia. Se atendermos aos gritos confusos dos críticos dos jornais e ao sussurro da repetição popular consequente, ouviremos um número avultado de nomes de poetas; se procurarmos, não o conhecimento extraído de relatórios mas o prazer da poesia e solicitarmos um poema, raramente seremos atendidos. Tentei sublinhar a importância da relação do poema com outros poemas de outros autores e sugeri a concepção de poesia como um todo vivo de toda a poesia já escrita. [...] Não é mercê das suas emoções pessoais, emoções provocadas por eventos particulares da sua vida, que um poeta é notável ou interessante. [...] A tarefa do poeta não é procurar novas emoções, mas usar as comuns e, ao transformá-las em poesia, exprimir sentimentos que não figuram de todo nas emoções originais. E as emoções que ele nunca experimentou servirão o seu fim tão bem como as que lhe são familiares.”

Alguma da poesia mais recente surge-nos eivada dessa emotividade gratuita, que tenta transmitir-se através de um impressionismo primário, redutor da própria realidade de que quer dar uma imagem fiel. Voltemos a Eliot: “Há muita gente apreciadora da expressão da emoção sincera em verso, e há um número mais reduzido de pessoas que pode apreciar a excelência técnica. Mas muito poucos sabem quando há a expressão de emoção significativa, emoção que tem vida no poema e não na história do poeta.”

Entre a meia dúzia, ou nem tanto, de poetas que poderemos destacar no panorama daquilo a que, à falta de melhor designação, chamarei, como já foi feito, nova poesia portuguesa, sobressai nitidamente Luís Quintais, que se estreou em 1995, com A Imprecisa Melancolia, e cuja obra tem sido construída com invulgar segurança, até atingir, em particular nos dois últimos livros publicados, Angst (2002) e Duelo (2004), um nível de qualidade artística que o coloca na primeira linha dos poetas portugueses actuais.
Nele a consciência de que a poesia se passa, realmente, dentro da linguagem, e não fora dela, de que o estilo de cada poeta significa um avanço, não no sentido de uma melhoria, mas de uma diferença, é evidente em cada poema, quer nas características da escrita, quer na explicitação de um pensamento poético consistente, que, como é óbvio, não se move no plano da pura teoria e da doutrina estética, mas é intrínseco ao discurso do poema enquanto tal. Regressando à questão da consciência da modernidade, também Luís Quintais poderia dizer: “o que em mim sente está pensando”.

Não se trata de uma poesia de fácil abordagem, na medida em que a sua natureza é pouco referencial, sendo o vínculo determinante estabelecido com uma realidade que se rarefaz e transfigura, quando transportada para o domínio da criação de uma linguagem extremamente densa e concentrada.
Interpretável somente à luz de alusões temáticas que recusam qualquer enraizamento no fait divers, no acontecimento quotidiano recortado e identificável, a poesia de Luís Quintais faz coincidir o peso da experiência e da observação do mundo e da história, ou seja, do espaço e do tempo, com a inalienável presença da linguagem e seus produtos, com especial incidência no literário e, dentro deste, no poético. Como vimos nas palavras de Eliot, importa “sublinhar a importância da relação do poema com outros poemas de outros autores”, sugerir “a concepção de poesia como um todo vivo de toda a poesia já escrita”.

As duas partes iniciais de Duelo, que tem oito, são sobretudo uma vasta reflexão sobre a linguagem e os seus usos, como que um “modo de usar” (a linguagem), uma sucessão de artes poéticas, de que “Mundo” é uma das mais significativas: “Não serei o fabbro, o oficiante de uma linguagem que todos reconhecem. Abandonei o palácio do consenso, e quero o ar que ninguém respirou, o impossível certamente. Peço a paisagem do que não há. Do que está morto e indesiste. Os frutos serão chamas que devoram, instante a instante, o fotograma do medo, o mapa dos erros, troncos, ramos, pequenos ramos, ínfimos ramos.”

Recusando-se a ser “o oficiante de uma linguagem que todos reconhecem”, Luís Quintais define claramente o seu objectivo: “peço a paisagem do que não há”. No fundo, é sempre esta a demanda da poesia: a perseguição incessante, interminável, e forçosamente utópica, da imagem por encontrar, da palavra nunca dita, do “ar que ninguém respirou”. “O impossível certamente”, admite o poeta. Porque a poesia existe dentro da poesia, forma-se nela, não desponta do nada, nem sequer de um mundo separado dos modos de o dizer.
Em “O sonho da linguagem” é isso que nos é dito: “Escreverás sobre a sujeição dos animais./Mas não hoje. Lembra-te de como se move/a pantera, ainda, na jaula sem literatura/que lhe legaram. Lembrar-te-ás. Mas não hoje./Porque hoje é o dia em que as metáforas/despertam, a arca se abre, e a linguagem/se assemelha a uma invenção em aberto.” O movimento da pantera “na jaula sem literatura” está inevitavelmente ligado à literatura. Depois de Rilke, a imagem da pantera é, e só pode ser, rilkeana. No dia em que “a linguagem se assemelha a uma invenção em aberto”, é, presumivelmente, impossível a lembrança da pantera “na jaula sem literatura”. Por isso “hoje” não é dia de sobre ela escrever, de a lembrar. “A paisagem que não há”, “o ar que ninguém respirou”, são, porventura, “o sonho da linguagem” e isso significa que “a linguagem celebra os animais/ depois dos animais terem perecido,/mas sem que haja memória disso,/sequer nostalgia disso. Apenas linguagem,//apenas sentido e som a ressoar dentro/do sentido”.

O poema que fecha a segunda parte do livro (significativamente intitulado, d’après Rimbaud, “Il faut être absolument moderne”) começa deste modo: “São mutuamente exclusivas as ordens da confissão e da poesia. Assim nos disseram os modernos.” O centro do texto é ocupado com o desenvolvimento descritivo-narrativo da imagem da “mãe a subir (passo medido pelo cansaço e pela fraqueza) a Rua Castilho”, e essa visão, onde a imagem presente se mistura com a lembrança remota da mesma imagem, leva à conclusão: “sei que os modernos nos pouparam ao infortúnio da confissão, mas que nos roubaram o idioma em que a luz de verão se faz de novo, como o princípio que quero descrever certeiramente sem que lhe saiba o tema ou a palavra que o torna claro.”

Esta ignorância, que é uma espécie de perda da chave que permitiria aceder ao real, ou, pelo menos, torná-lo claro, é a condição, ou o preço, de possuir uma consciência artística moderna. Para citar um título de António Ramos Rosa, o livro dum poeta moderno é um “livro da ignorância”, onde a obscuridade resulta do “despertar [...] para a vigília das metáforas,/para o sonho da linguagem”.
O poder de dar nomes aos lugares do mundo contém, em si mesmo, “o vírus da linguagem”: “Eu compreendia o poder da toponímia. Rua Castilho, escrevia-se, e o vírus da linguagem percorria o labirinto da história e da circunstância que fazia determinar-lhe os sentidos.”

Referindo-se ao poeta cego que dá o nome à rua que, por sua vez, serve de título a este poema, Luís Quintais declara: “Mas Castilho é apenas uma pobre metáfora.” Uma metáfora dos “nomes que se apagam nos cadernos do futuro”, deixando “um vestígio de treva atrás de si”. Assim é retomado o tema da perda da claridade, como se “o vírus da linguagem”, infectando tudo aquilo a que dá nome, fatalmente conduzisse à destruidora “vigília das metáforas”.
Na terceira parte do livro é da morte e de uma despedida que se fala, uma ausência que destrói a casa – e também aqui é no pensamento, e portanto na linguagem, que a casa verdadeiramente existe: “uma casa não é uma casa, apenas uma reverberação da mente”. O mundo está agora reduzido a essa casa e “a casa é um esquife”. Mais uma vez, é dentro da poesia que está a vida (“Em que poemas vives?”) e a memória prende-se ao som duma voz (“a tua voz”), que, a seguir à austera e despida secção IV (como se ela própria representasse a redução da vida, e, consequentemente, do texto, a cinza: o primeiro poema desta parte chama-se “Crematório”), ressurge, no capítulo seguinte do livro, como “voz, vento, ferrugem”.

É um tempo de ruína, em que se procura “uma imagem, resíduo da experiência”. Nas partes VI e VII, Duelo atinge o seu clímax; o tema dominante, o medo, serve de título ao poema inicial e prolonga-se no seguinte, “Fotograma”: “O medo é um fotograma entre outros. Ele move-se sem que se saiba o que o move, quem o move, por que se move.” As anteriores secções do livro são, de certo modo, iluminadas por estas. E lembramo-nos de que o título do livro que precede Duelo é Angst (medo).

A imagem do cão feroz, que aparece em “Fotograma” (“uma massa negra, de uma negra ferocidade, atira-se (ou é atirada) de encontro ao portão de grades num frenesi assassino”) absolutiza-se no magnífico poema seguinte, “O mundo como representação”: “ ‘O mundo é a minha representação.’/Que tipo de imagem/ eclode na mente/quando, de noite, um cão uiva,/como se a sua carne/não fosse carne da sua carne,/mas um véu espesso/que cobre a dor/e a torna mais intensa?//Uma janela abre--se de par em par,/e eu persigo os sulcos e a ira/desse cão mirífico,/desse cão que existe algures/para lá do ver./A noite que ignorei torna-se visível,/mas não a ira, a ira absoluta do cão,/ainda que os meus olhos/ceguem numa exasperante vontade/de luz.”

A morte assumiu agora talvez a forma “desse cão que existe algures/para lá do ver”. E amplia-se, ganhando dimensão histórica e identificando-se mesmo com a essência do mal (“Que usos darás à palavra ‘mal’?” – e, novamente, é no plano da linguagem que a história se repercute) . Estamos já no domínio do símbolo, ou da alegoria. Memórias de Varsóvia e Treblinka, de Celan e de “aldeias cujos nomes esquecemos” são convocadas, o horror evocado (“O que podemos contra o horror?”), sob as suas diversas formas, da tortura ao martírio, quer de homens, quer de animais. E o horror é o mundo, onde animais e homens se confundem: “Numa praia, um homem revolvia o lixo. [...] Na mesma praia, gaivotas agitavam/asas em fundos de plástico negro [...]”. Ecoando uma ideia conhecida, um dos poemas leva mesmo como título “A inútil poesia”.
Em Duelo, Luís Quintais descreve momentos de crueldade absoluta, que funcionam como representação do inferno para o qual, por vezes, estamos cegos. O poema “For animals”, que tem por epígrafe “For animals eternal Treblinka”, inicia-se com a frase “Está repleta de martírio a memória que me deram” e apresenta imagens como estas: “[...] a emudecida violência das carcaças expostas, as vísceras, o fedor das vísceras gritando. [...] Copiosas, as carnes esfoladas surgiam suspensas em metálicos ganchos. Penas e plumas encharcadas pejavam o chão. Uma ave decapitada abraçava o mundo.[...]” Alguma coisa nisto nos recorda a intensidade e a violência de certos textos de Vulcão de Luís Miguel Nava. E também Luís Quintais escolhe muitas vezes a forma do poema em prosa, que admiravelmente domina, para as suas perturbantes pequenas narrações.

A poderosíssima imagem atrás citada – “uma ave decapitada abraçava o mundo” – poderá bem ficar como um emblema deste livro; como igualmente o poderá ser o poema de que retira o título, “Duelo”: “Isto gravita na minha lembrança:/Onegin estilhaça o cérebro do amigo/a uma distância de incertos passos://assisto ao seu remorso/e invejo esse remorso.”
Invejar o remorso é, na verdade, o melhor que um homem pode fazer num mundo de que também Sophia disse (“Assassinato de Simonetta Vespucci”): “Vê como os homens se tornam animais/E como os animais se tornam anjos”.

<
Relâmpago nº 16, Abril de 2005
 
Voltar ao topo