A observação
e o estudo de como a poesia evolui, de como a linguagem poética
se modifica e os próprios objectivos da escrita do poema
se alteram, levam-nos a olhar cada livro de poesia, ou cada poema,
procurando encontrar uma dinâmica própria, um impulso
futurista, que faz deles, quando essa energia existe, marcos
no percurso que cada poesia, em sentido lato, traça dentro
da sua língua.
Isto,
que, nos tempos modernos, pareceu evidente até um certo momento
do século XX, começou, entre nós, a partir
dos meados de 70, a ser contestado em alguns sectores, para os quais
a poesia se daria melhor com uma certa falta de ambição
estilística e com a rasura de quaisquer sinais de invenção
pessoal, do que com a vontade de inovação, coisa mal
aceite por mentes antimodernas (por vezes, disfarçadas de
pós-modernas), que terão pretendido mesmo desvalorizar
a ideia de modernidade, num desinteresse por tudo o que pudesse
representar a criação de um mundo construído,
não através da utilização directa da
vida e das suas emoções, mas como algo que existe
apenas enquanto uso diferenciado da linguagem.
No ensaio, de 1919, “A tradição e o talento
individual”, um dos textos fundadores de uma teoria da poesia
moderna, e tão próximo daqueles, em prosa e em verso,
em que Pessoa exprimiu os seus conceitos de poesia e de poeta (a
começar pelo nunca de mais celebrado “O poeta é
um fingidor”), T. S. Eliot disse, como é sabido, coisas
definitivas sobre esta matéria, algumas das quais talvez
valha a pena lembrar (uso a edição de J. Monteiro-Grillo,
em cuja tradução colaborou Fernando de Mello Moser
– ambos meus professores durante o período em que frequentei
a Faculdade de Letras de Lisboa): “A crítica honesta
e a apreciação dirigem-se não para o poeta
mas para a poesia. Se atendermos aos gritos confusos dos críticos
dos jornais e ao sussurro da repetição popular consequente,
ouviremos um número avultado de nomes de poetas; se procurarmos,
não o conhecimento extraído de relatórios mas
o prazer da poesia e solicitarmos um poema, raramente seremos atendidos.
Tentei sublinhar a importância da relação do
poema com outros poemas de outros autores e sugeri a concepção
de poesia como um todo vivo de toda a poesia já escrita.
[...] Não é mercê das suas emoções
pessoais, emoções provocadas por eventos particulares
da sua vida, que um poeta é notável ou interessante.
[...] A tarefa do poeta não é procurar novas emoções,
mas usar as comuns e, ao transformá-las em poesia, exprimir
sentimentos que não figuram de todo nas emoções
originais. E as emoções que ele nunca experimentou
servirão o seu fim tão bem como as que lhe são
familiares.”
Alguma da poesia mais recente surge-nos eivada dessa emotividade
gratuita, que tenta transmitir-se através de um impressionismo
primário, redutor da própria realidade de que quer
dar uma imagem fiel. Voltemos a Eliot: “Há
muita gente apreciadora da expressão da emoção
sincera em verso, e há um número mais reduzido de
pessoas que pode apreciar a excelência técnica. Mas
muito poucos sabem quando há a expressão de emoção
significativa, emoção que tem vida no poema
e não na história do poeta.”
Entre a meia dúzia, ou nem tanto, de poetas que poderemos
destacar no panorama daquilo a que, à falta de melhor designação,
chamarei, como já foi feito, nova poesia portuguesa,
sobressai nitidamente Luís Quintais, que se estreou em 1995,
com A Imprecisa Melancolia, e cuja obra tem sido construída
com invulgar segurança, até atingir, em particular
nos dois últimos livros publicados, Angst (2002)
e Duelo (2004), um nível de qualidade artística
que o coloca na primeira linha dos poetas portugueses actuais.
Nele a consciência de que a poesia se passa, realmente, dentro
da linguagem, e não fora dela, de que o estilo de cada poeta
significa um avanço, não no sentido de uma melhoria,
mas de uma diferença, é evidente em cada poema, quer
nas características da escrita, quer na explicitação
de um pensamento poético consistente, que, como é
óbvio, não se move no plano da pura teoria e da doutrina
estética, mas é intrínseco ao discurso do poema
enquanto tal. Regressando à questão da consciência
da modernidade, também Luís Quintais poderia dizer:
“o que em mim sente está pensando”.
Não se trata de uma poesia de fácil abordagem, na
medida em que a sua natureza é pouco referencial, sendo o
vínculo determinante estabelecido com uma realidade que se
rarefaz e transfigura, quando transportada para o domínio
da criação de uma linguagem extremamente densa e concentrada.
Interpretável somente à luz de alusões temáticas
que recusam qualquer enraizamento no fait divers, no acontecimento
quotidiano recortado e identificável, a poesia de Luís
Quintais faz coincidir o peso da experiência e da observação
do mundo e da história, ou seja, do espaço e do tempo,
com a inalienável presença da linguagem e seus produtos,
com especial incidência no literário e, dentro deste,
no poético. Como vimos nas palavras de Eliot, importa “sublinhar
a importância da relação do poema com outros
poemas de outros autores”, sugerir “a concepção
de poesia como um todo vivo de toda a poesia já escrita”.
As duas partes iniciais de Duelo, que tem oito, são
sobretudo uma vasta reflexão sobre a linguagem e os seus
usos, como que um “modo de usar” (a linguagem), uma
sucessão de artes poéticas, de que “Mundo”
é uma das mais significativas: “Não serei o
fabbro, o oficiante de uma linguagem que todos reconhecem. Abandonei
o palácio do consenso, e quero o ar que ninguém respirou,
o impossível certamente. Peço a paisagem do que não
há. Do que está morto e indesiste. Os frutos serão
chamas que devoram, instante a instante, o fotograma do medo, o
mapa dos erros, troncos, ramos, pequenos ramos, ínfimos ramos.”
Recusando-se a ser “o oficiante de uma linguagem que todos
reconhecem”, Luís Quintais define claramente o seu
objectivo: “peço a paisagem do que não há”.
No fundo, é sempre esta a demanda da poesia: a perseguição
incessante, interminável, e forçosamente utópica,
da imagem por encontrar, da palavra nunca dita, do “ar que
ninguém respirou”. “O impossível certamente”,
admite o poeta. Porque a poesia existe dentro da poesia, forma-se
nela, não desponta do nada, nem sequer de um mundo separado
dos modos de o dizer.
Em “O sonho da linguagem” é isso que nos é
dito: “Escreverás sobre a sujeição dos
animais./Mas não hoje. Lembra-te de como se move/a pantera,
ainda, na jaula sem literatura/que lhe legaram. Lembrar-te-ás.
Mas não hoje./Porque hoje é o dia em que as metáforas/despertam,
a arca se abre, e a linguagem/se assemelha a uma invenção
em aberto.” O movimento da pantera “na jaula sem literatura”
está inevitavelmente ligado à literatura. Depois de
Rilke, a imagem da pantera é, e só pode ser, rilkeana.
No dia em que “a linguagem se assemelha a uma invenção
em aberto”, é, presumivelmente, impossível a
lembrança da pantera “na jaula sem literatura”.
Por isso “hoje” não é dia de sobre ela
escrever, de a lembrar. “A paisagem que não há”,
“o ar que ninguém respirou”, são, porventura,
“o sonho da linguagem” e isso significa que “a
linguagem celebra os animais/ depois dos animais terem perecido,/mas
sem que haja memória disso,/sequer nostalgia disso. Apenas
linguagem,//apenas sentido e som a ressoar dentro/do sentido”.
O poema que fecha a segunda parte do livro (significativamente intitulado,
d’après Rimbaud, “Il faut être
absolument moderne”) começa deste modo: “São
mutuamente exclusivas as ordens da confissão e da poesia.
Assim nos disseram os modernos.” O centro do texto é
ocupado com o desenvolvimento descritivo-narrativo da imagem da
“mãe a subir (passo medido pelo cansaço e pela
fraqueza) a Rua Castilho”, e essa visão, onde a imagem
presente se mistura com a lembrança remota da mesma imagem,
leva à conclusão: “sei que os modernos nos pouparam
ao infortúnio da confissão, mas que nos roubaram o
idioma em que a luz de verão se faz de novo, como o princípio
que quero descrever certeiramente sem que lhe saiba o tema ou a
palavra que o torna claro.”
Esta ignorância, que é uma espécie de perda
da chave que permitiria aceder ao real, ou, pelo menos, torná-lo
claro, é a condição, ou o preço, de
possuir uma consciência artística moderna. Para citar
um título de António Ramos Rosa, o livro dum poeta
moderno é um “livro da ignorância”, onde
a obscuridade resulta do “despertar [...] para a vigília
das metáforas,/para o sonho da linguagem”.
O poder de dar nomes aos lugares do mundo contém, em si mesmo,
“o vírus da linguagem”: “Eu compreendia
o poder da toponímia. Rua Castilho, escrevia-se, e o vírus
da linguagem percorria o labirinto da história e da circunstância
que fazia determinar-lhe os sentidos.”
Referindo-se ao poeta cego que dá o nome à rua que,
por sua vez, serve de título a este poema, Luís Quintais
declara: “Mas Castilho é apenas uma pobre metáfora.”
Uma metáfora dos “nomes que se apagam nos cadernos
do futuro”, deixando “um vestígio de treva atrás
de si”. Assim é retomado o tema da perda da claridade,
como se “o vírus da linguagem”, infectando tudo
aquilo a que dá nome, fatalmente conduzisse à destruidora
“vigília das metáforas”.
Na terceira parte do livro é da morte e de uma despedida
que se fala, uma ausência que destrói a casa –
e também aqui é no pensamento, e portanto na linguagem,
que a casa verdadeiramente existe: “uma casa não é
uma casa, apenas uma reverberação da mente”.
O mundo está agora reduzido a essa casa e “a casa é
um esquife”. Mais uma vez, é dentro da poesia que está
a vida (“Em que poemas vives?”) e a memória prende-se
ao som duma voz (“a tua voz”), que, a seguir à
austera e despida secção IV (como se ela própria
representasse a redução da vida, e, consequentemente,
do texto, a cinza: o primeiro poema desta parte chama-se “Crematório”),
ressurge, no capítulo seguinte do livro, como “voz,
vento, ferrugem”.
É um tempo de ruína, em que se procura “uma
imagem, resíduo da experiência”. Nas partes VI
e VII, Duelo atinge o seu clímax; o tema dominante,
o medo, serve de título ao poema inicial e prolonga-se no
seguinte, “Fotograma”: “O medo é um fotograma
entre outros. Ele move-se sem que se saiba o que o move, quem o
move, por que se move.” As anteriores secções
do livro são, de certo modo, iluminadas por estas. E lembramo-nos
de que o título do livro que precede Duelo é
Angst (medo).
A imagem do cão feroz, que aparece em “Fotograma”
(“uma massa negra, de uma negra ferocidade, atira-se (ou é
atirada) de encontro ao portão de grades num frenesi assassino”)
absolutiza-se no magnífico poema seguinte, “O mundo
como representação”: “ ‘O mundo
é a minha representação.’/Que tipo de
imagem/ eclode na mente/quando, de noite, um cão uiva,/como
se a sua carne/não fosse carne da sua carne,/mas um véu
espesso/que cobre a dor/e a torna mais intensa?//Uma janela abre--se
de par em par,/e eu persigo os sulcos e a ira/desse cão mirífico,/desse
cão que existe algures/para lá do ver./A noite que
ignorei torna-se visível,/mas não a ira, a ira absoluta
do cão,/ainda que os meus olhos/ceguem numa exasperante vontade/de
luz.”
A morte assumiu agora talvez a forma “desse cão que
existe algures/para lá do ver”. E amplia-se, ganhando
dimensão histórica e identificando-se mesmo com a
essência do mal (“Que usos darás à palavra
‘mal’?” – e, novamente, é no plano
da linguagem que a história se repercute) . Estamos já
no domínio do símbolo, ou da alegoria. Memórias
de Varsóvia e Treblinka, de Celan e de “aldeias cujos
nomes esquecemos” são convocadas, o horror evocado
(“O que podemos contra o horror?”), sob as suas diversas
formas, da tortura ao martírio, quer de homens, quer de animais.
E o horror é o mundo, onde animais e homens se confundem:
“Numa praia, um homem revolvia o lixo. [...] Na mesma praia,
gaivotas agitavam/asas em fundos de plástico negro [...]”.
Ecoando uma ideia conhecida, um dos poemas leva mesmo como título
“A inútil poesia”.
Em Duelo, Luís Quintais descreve momentos de crueldade
absoluta, que funcionam como representação do inferno
para o qual, por vezes, estamos cegos. O poema “For animals”,
que tem por epígrafe “For animals eternal Treblinka”,
inicia-se com a frase “Está repleta de martírio
a memória que me deram” e apresenta imagens como estas:
“[...] a emudecida violência das carcaças expostas,
as vísceras, o fedor das vísceras gritando. [...]
Copiosas, as carnes esfoladas surgiam suspensas em metálicos
ganchos. Penas e plumas encharcadas pejavam o chão. Uma ave
decapitada abraçava o mundo.[...]” Alguma coisa nisto
nos recorda a intensidade e a violência de certos textos de
Vulcão de Luís Miguel Nava. E também
Luís Quintais escolhe muitas vezes a forma do poema em prosa,
que admiravelmente domina, para as suas perturbantes pequenas narrações.
A poderosíssima imagem atrás citada – “uma
ave decapitada abraçava o mundo” – poderá
bem ficar como um emblema deste livro; como igualmente o poderá
ser o poema de que retira o título, “Duelo”:
“Isto gravita na minha lembrança:/Onegin estilhaça
o cérebro do amigo/a uma distância de incertos passos://assisto
ao seu remorso/e invejo esse remorso.”
Invejar o remorso é, na verdade, o melhor que um homem pode
fazer num mundo de que também Sophia disse (“Assassinato
de Simonetta Vespucci”): “Vê como os homens se
tornam animais/E como os animais se tornam anjos”.