São da responsabilidade de José Bento as mais importantes traduções de língua espanhola para a língua portuguesa; somente uma grande sensibilidade e mestria poéticas terão permitido verter para o português autores como Quevedo, Garcia Lorca, Pablo Neruda, Antonio Machado ou Ruben Darío, para nos cingirmos apenas a algumas das suas traduções, que mantiveram uma regularidade notável ao longo de mais de cinco décadas.
Só de longe em longe, tem o leitor acesso à própria produção poética de José Bento, sem o crivo da versão e da tradução, a palavra que se dissimula sobre a palavra de outrem. É o que sucede neste livro de inéditos (e não só), muito embora se tenha a franca sensação de que se trata de um autor formado pelo diálogo com muitas vozes e que convoca para a sua poesia uma enraizada memória poética. Apesar de se ter estreado em publicações dos anos cinquenta, como as revistas Árvore ou Cassiopeia, por exemplo, e de ter editado durante os anos setenta pequenas colectâneas de circuito reduzido, só em 1992, José Bento recolhe os seus poemas no livro Silabário (Relógio d’Água), distinguido, aliás, com dois prémios consecutivos, o prémio de Poesia Pen Club e o Prémio D. Dinis. Silabário, além de poemas inéditos, e dos publicados em revistas dispersas, incluía também as plaquettes editadas até então: Sequência de Bilbau, In Memoriam, o Enterro do Senhor Orgaz.
Este mais recente livro, Sítios, reúne, por sua vez, os textos originais escritos desde então, alguns textos já editados em diferentes revistas literárias, assim como poemas do livro Um Sossegado Silêncio (Asa, 2002), título retirado de D. Quixote, também vertido para português por José Bento, e que é novamente resgatado para epígrafe do volume.
Os poemas da colectânea (o mesmo acontecia também maioritariamente em Silabário) sucedem-se quase sempre na ausência do título, numerados por meio de uma sequência, desde o número um até ao cento e dezassete como se cada poema (ou conjuntos de poemas) se apresentasse como uma etapa de um percurso a ser seguido, sim, mas também, simultaneamente, como uma manifestação singular de intensidades. Cada texto mostra-se resguardado de remissões exteriores, oferecendo-se como uma revelação de sentimentos, de percepções, de fragmentárias compreensões do mundo. O poema «5», citado em seguida, dá bem conta desta mesma consciência de que todos os textos, sendo unidades, fazem parte de uma massa única, ainda que desagregada, de impressões de um sujeito: «Os poemas que escrevas,/ ainda que muitos, são/ um só/ inacabável,/ interceptado um dia:// sufocante abertura por onde irás descendo/ a um poço, uma vertigem, com uma única saída// que enfim vislumbrarás/ quando já não tiveres olhos.» (p.13)
São raros, na verdade, os poemas do livro encabeçados por um título com uma referência específica, que se assuma como diapasão de sentido e de leitura: um quadro, uma escultura ou uma citação a servir-lhe serve de mote. No entanto, uma definição da palavra «Sítios» retirada vagamente «de um dicionário» (tal como vem indicado) dá conta da pluralidade do título, que tanto significa «qualquer lugar», como «cerco ou assédio», entreabrindo, consequentemente, uma possível percepção da leitura destes poemas avulsos como o todo que afinal são: uma apropriação, aproximação, de sítios, de lugares, de objectos, situações e suas percepções. Os poemas sucedem-se, assim, como modo de acercar lugares, não necessariamente espaciais (por vezes são até temporais, como se verá), entreabrindo pequenas descobertas, revelações espirituais, pois o que se vai «assim acumulando/ nem é música, só proximidade/ de um fragmento, para nós o todo/ a cumprir o que tenteamos/ apegando-nos a um lugar, uma data// a um corpo cuja posse nos consinta/ a separação de dois instantes […]», como se escreve no poema «41», que, aliás, por si mesmo daria a justificação, necessariamente ampla, do título do livro.
A intensidade, assim como certo travo de uma serena dramaticidade, será um dos veios desta poesia, que consegue conjugar uma sobriedade clássica, mantida mesmo no verso livre e na irregularidade métrica, com certas reminiscências maneiristas, não propriamente pelo hermetismo da linguagem ou por exuberantes construções verbais, lúdicas, mas por um certo fechamento e adensamento do poema, criando imagens não expectáveis, encerradas na própria densidade e estrutura da língua. O certo é que percorre o livro um tom de uma espiritualidade consistente, uma reflexão ensimesmada, mas ao mesmo tempo sóbria e contida, perfeitamente controlada. As referências a poetas ou pintores essencialmente de língua espanhola pontuam os poemas, por vezes de forma subtil, entretecidas no próprio tecido poético; outras vezes, as menções são mais directas como nos poemas dedicados a Bach, Juan Sánchez Cotán ou César Vallejo. No poema «19», por exemplo, as citações dissimulam-se, no seio poema, convocando Camões e S. João da Cruz, poeta espanhol do final do séc. XVI, também já traduzido por José Bento. Repare-se como, neste mesmo texto, o acto poético é questionado, bem ao fundo, convocando para o poema as próprias heranças e linhagens cruzadas. Veja-se como é no confronto entre a percepção da ordem e da desordem, da serenidade e do conflito, da música e do grito que se forja uma latente arte poética:
«Não a música das palavras, não/ a baba de uma melodia pegajosa, a harmonia/ a tecer retalhos de sílabas simétricas/ para atingir a peça/ que se pretende excelsa mas não burla/ com a astúcia de seus truques./ precários afinal.// Ninguém aplaque os cacos que ao cair/ rasgam ouvidos castos, perceptistas: alma minha gentil, un non sé qué que quendan balbuciendo./ Nos versos a música tem de ser muito uma outra:/ a dos passos descalços do susto para o grito,/ a das veias açodadas pelo amor ou a raiva,/ a do nome que mal pode segredar-se/ quando a sombra amordaça a mordida e as lágrimas […].» (p.37)
Nos primeiros poemas do livro, pressente-se o conflito, um braço de ferro, embora brando, com a própria língua e o próprio fazer poético, ou mesmo com o próprio dizer ou nomear, que surge como um acto intenso, de certo modo difícil e espinhoso, como se se tratasse de uma espécie de traição do âmago das coisas, «pode lavrar um signo/ o que vibra a matéria/ sem perturbar seu íntimo?», pergunta-se logo no primeiro poema. Mas esta auto-reflexividade, este tema do escritor escrevendo-se, surge esparsamente ao longo do livro. No poema «107», um dos mais longos, já perto do final da obra, assistimos ao poeta escrevendo no limiar entre a luz e as sombras, e quase o leitor se sente a revisitar a ambiência claro-escuro de uma pintura barroca: «Principia a escurecer, é já difícil/ ler o que compus entregando-me todo, mortiça e declinante a claridade,/ apressadas e inquietas as notas colhidas,/exaustos os olhos e a fonte donde flui/ o sangue veemente em quanto faço.» (p.199)
A intensidade, de sentires e da linguagem no seu uso, é uma marca que percorre a poesia de José Bento, que ao criar imagens densas, aparecidas como ângulos de pequenas revelações e percepções enigmáticas do mundo, de sentimentos, impressões, não raro coloca em cotejo um sujeito e a construção pouco definida de um tu feminino a quem se dirige o texto poético. E, nos primeiros poemas do livro, é posta em cena, de modo bem definido, a relação entre escrever e sentir, buscando captar, de certo modo, o âmago desse processo, a conjugar o acto físico (a mão que segura o papel) com o lado emocional, continuidade do sentimento e do coração: «[…] Tua destra segue o coração, prolonga-o;/ a outra mais perto dele um infindo nada,/ nunca se distancia nem alheia da matéria da fala// que em denso adágio ou numa tempestade,/ de teu sangue transbordam, incorporam/ desejo e posse, ruína e despedida.», escreve-se no segundo poema do livro. Mas é mais à frente, novamente no poema «107», que se explicita a função de artífice do poeta no confronto com a sua matéria: «É um trabalho de artífice, o meu. Sou tecelão/ de sons que elabora e harmonizo, entalhador/ a quem a matéria agride até ser afeiçoada.»
Não havendo qualquer tipo de subdivisão do livro em capítulos ou secções – como se referiu anteriormente, os poemas sucedem-se tão simplesmente numa sequência linear e numerados – há contudo uma organização no livro, não diremos a partir de temáticas, que esta seria uma expressão recusada pelo próprio concepção poética do volume, mas sim de núcleos de impressões que coincidem no mesmo percurso, como diferentes modos de exploração de diferentes sítios, na acepção lata e alargada que se encontra definida, logo no início. Assim, descobrimos, em dado momento, a exploração de certa incompreensão angustiada perante o mundo, como se se tratasse de uma percepção dolente e desfocada. É a sensação de errância, de imprecisão dos lugares esquivos, uma inquietação, que se vai afinal encontrar como pano de fundo dos poemas: «um murmúrio a que uma toada/ concede alada consistência» (p.118), a percepção vaga de um «rosto fugidio, quase cinza» (p.126), «uma estrada, um carreiro/ inscrito por passos que não o lembram» (p.127), um «descampado cada vez mais esquivo». Mais do que poemas sobre lugares, sobressai aqui a dificuldade em acercá-los, uma funda angústia e turbação, depositada em tudo o que rodeia o sujeito poético, os lugares propriamente ditos, mas também o outro, revelando-se uma certa impressão de desconfiança perante o mundo: «Se nada pedes, nada aceitas, não colhas/ senão palavras rasas/ a não conterem nada, recusas a delatar teus bolsos ermos.».
Pode-se dizer que um efeito de estranheza demarca esta poesia, como se a intensidade exibida pela linguagem só se efectivasse com o poema a fechar-se em si próprio e daí também adviesse parte do misticismo e da revelação que a poesia descobre, como se cada texto resultasse num «grito rude, ou um sussurro de sangue», relembrando os versos de um outro momento do livro. Trata-se de sítios que são essencialmente imagens, que se constroem com dramaticidade, pela robustez depositada nas palavras, pela estrutura densa, do poema, sempre reflexivo a fazer transparecer o espanto angustiado do sujeito: «Hoje é sempre ou jamais?», pergunta-se a dado momento.
Muito embora se mantenha um registo uniforme, no final do livro, salienta-se certa inflexão na decorrência dos textos: os poemas sucedem-se quase como variações de um tema, subordinados a três títulos genéricos: «Jardins», «As Aves» e «Respigo: outra estação», este último mantendo um diálogo evidente com uma sequência intitulada justamente «Respigo», em Silabário. Aqui redescobrimos as mesmas buganvílias, e os poemas curtos, exibidos como apontamentos perceptivos, com uma proximidade muito grande ao acto de ver. E será possível que o leitor se aperceba de que a angústia no dizer, a insegurança pressentida nos poemas anteriores, no modo como o mundo, suas impressões, sensações são apreendidos, é de algum modo serenada, apesar de estes jardins, que aqui são ditos, serem maioritariamente desagregados, a despedaçar-se; são jardins de «corolas [que] assumem rostos idos» […] «entre sombras que exalam claridade/ e restituem ferido o pleno outrora.» (p. 210), são jardins de «canteiros injuriados» (p.213), ou de «flores [que] nunca persistem: sobrevivem amputadas, de passagem,/ trazidas por mãos que cegas crêem/nelas transmitir um adeus perene […].» (p.216). Uma leitura mais atenta faz, então, compreender que estes lugares concretos aqui lidos, sob o epíteto de jardins, estes sítios, não nos falam sequer de espaços físicos, mas sobretudo de lapsos temporais, da passagem do tempo, que deixa uma marca destrutiva e de incompreensão nos espaços físicos, logo que estes se tornam espaços mentais. Assim, também aquelas aves, que servem de mote a outra sequência poética, se tornam a metáfora da mudança, da metamorfose, do que se transfigura ao nosso olhar: «Ergue-se a árvore e às vezes/ é quase árvore:/ luz espessa/ suspensa/ do teu olhar» (p.229). E este sítios, estes espaços, estas impressões, estes lugares físicos, e não só, que percorrem o sujeito, assumem então uma outra feição: a dificuldade de percepção, a estranheza, a insegurança da passagem temporal.
Trata-se este de um livro muitíssimo profundo e denso, que atinge grande intensidade. Assumindo dialogicamente uma herança cultural, conjuga, como poucos livros, a espessura do sujeito a confrontar-se com percepções, esparsas, angustiadas, desagregadas. E assim tudo se torna estado de sítio, tudo se torna lugar e espaço, numa forma de assédio, de um acercar do mundo, pela força, quase bruta das palavras. Há um verso, de Luiza Neto Jorge, recorrentemente citado, que nos fala da arte da poesia, da arte de construir coisas com as palavras, como «Acmé a ser arte». A poucos livros se pode atribuir esta imagem. Mas Sítios, de José Bento, será com toda a certeza um deles.