Luís Quintais
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Índex
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Poema, taça, amêndoa
J O S É O R I C A R D O O N U N E S
 
HELDER MOURA PEREIRA, SE AS COISAS NÃO FOSSEM O QUE SÃO, ASSÍRIO & ALVIM, 2010

Se as Coisas Não Fossem o que São, o título do mais recente livro de poesia de Helder Moura Pereira, parece preparar-nos para a possibilidade de, ao longo das suas páginas, encontrarmos a formulação de uma alternativa ao que as coisas são. Mas o título, no seu modo condicional, permite igualmente uma leitura em sentido inverso, com maior investimento no que as coisas são realmente do que no que as coisas poderiam ser se não fossem o que são: “Nunca perceberia nada. Da tua boca nunca ouvi / nada igual ou parecido. Isto era o que eu diria / ao meu amor se as coisas não fossem o que são.” (p. 19). Também os versos serão, afinal, um qualquer meio de transporte rumo à evasão “que vem num cromo da vida / como sinal de uma outra vida / possível. […]” (p. 15). E deixem-nos a meio caminho, sem sabermos para que lado havemos de nos voltar.

Uma breve análise ao modo e ao contexto de surgimento da palavra realidade nos versos de Helder Moura Pereira permite-nos confirmar que a intenção presente no título se situa no campo da segunda hipótese que enunciámos. A realidade – o que as coisas parecem ser – configura-se como resto, escombros de um qualquer terramoto. A realidade é também a única hipótese que nos resta face à impossibilidade ou inutilidade de gerar alternativas, sejam elas resultado do nosso imaginário ou fruto da nossa acção: “[…] Chegou-se / então mais perto da realidade, isto / é, foi para a praia – de cadeira, livro / e chapéu. Percebia agora que já não podia / entregar o ensaio para publicação.” (p. 13); “(quinze minutos pareceram quinze / horas) e morreu. Assisti a tudo / sem poder ajudar. Já que não se pode / modificar a realidade, ao menos / se descreva o que se vê, diz Fassbinder. / Se não estou em erro é Fassbinder.” (p. 84). A realidade dá-se sempre a ver como regresso, é produto de um refluxo disfórico, não tanto em consequência de um confronto com o “teatro social” (p. 33) ou com “[…] a guerra total / e persistente, o vazio controlado / pela ignorância, os crimes impunes, / a sombra cinzenta no futuro da humanidade, / a hipótese do grande estoiro final.” (p. 10), quanto devido a um mal de vivre que transforma o sujeito num palhaço “tristonho por causa de uma solidão / que está longe de ser única […].” (p. 31).

Reencontramos, assim, o universo de torpor, inércia e melancólica contemplação em que, desde o início, podemos situar a poesia de Helder Moura Pereira: “[…] Sou / dos que ficam, parados, sem mexer / um único músculo, mais vazio / do que um balão rebentado.” (p. 15). O profundo desamparo existencial, que constitui imagem de marca do Autor, tem expressão numa deriva constante e infinita em que o sujeito se coloca à margem, sem conseguir estabelecer laços, ou se vê “de costas a fechar janelas e portas” (p. 92) ou se apercebe que a sua cara se tornou “um lugar obscuro e todo vazio” (p.94). Noutro poema somos ainda confrontados com um sujeito a caminhar em direcção ao nada: “Começou a caminhar na direcção / do nada, o nada ficava sempre a direito / e por isso não havia que enganar. / […] / Agora pára, de repente pára, nós / nunca saberemos se viu no fim / da linha de luz a morte ou se / sentiu um hipotético recomeço.” (pp. 68-69). Este apagamento do sujeito, todavia, nunca assume um recorte trágico. O horror decorre, sobretudo, da ausência de uma intensidade afectiva e emocional face à falta de uma resposta para as interrogações e que é denunciada de forma cáustica, sarcástica: “[…] Os jardins / são coisas perigosas, levam / à ausência de interrogação / sobre o sentido verdadeiro / da vida. Ah, não sabem o que é / o sentido verdadeiro da vida? / Só um momento, que já vos digo.” (p. 83). Por outro lado, torna-se dilacerante um conflito entre corpo e alma que parece resolver-se a favor do corpo: “sente, valha-me Deus, como sente, / não desiste, luta, e como luta, meu Deus, / como luta. Esse corpo cai, e que mais / poderia eu fazer senão levantá-lo?” (p. 75) O corpo transforma- -se, assim, numa espécie de valor residual.

O amor que chega ao fim, e de cujo “luto” (p. 38) os poemas podem dar testemunho, ou o amor não correspondido constituem outro dos núcleos estruturantes deste livro de poemas. O amor e a memória do amor alimentam a distância entre um passado, sublime, e um presente que não chega para dar abrigo à existência: “Saudades, deve ser isso, saudades / dos momentos ferozes, maravilhosos.” (p. 12). O amor é comparado a uma droga dura e o sujeito a um viciado, sem vontade própria, refém desse amor um pouco totalitário: “[…] fiquei agarrado, e agora, que tomo / uma espécie de metadona para o amor, / sinto saudades enormes da droga verdadeira.” (p. 11); “Tu és uma melodia daquelas que não saem / da cabeça, por mais que a gente se esforce, / por mais que a gente não queira.” (p.29). O amor faz do sujeito um boneco, seja ele um “[…] pato amarelo / com uma chave nas costas […]” (p. 17) ou um boneco “de barro, um boneco de neve”, um boneco “de gesso e de cimento” (p. 19). O amor prende, ancora, é uma espécie de tábua de salvação, pois permite que alguém que se encontra à deriva obtenha um destino, uma direcção para onde seguir: “Perdera- -me e portanto quando me encontraste / eu era um ser à deriva e fácil de encontrar.” (p. 30).

Finalmente, gostaria de realçar o tópico da própria palavra poética e da relação entre vida e escrita. Que as palavras são insuficientes e inadequadas para dar conta do real é um dos fios condutores da obra de Helder Moura Pereira e trata--se de uma asserção possível de subscrever ao lermos versos como “Metáfora? Nem penses, os teus abraços / são quentes e é por isso que finjo / ter frio o tempo todo. […]” (p. 17). As palavras são consideradas pobres e incapazes: “Para tornar mais reais as minhas queixas / achei-me na pobreza das palavras. […]” (p. 19). O poema não passa de um inútil “bordado” (p. 50), não serve senão para “[…] rasurar a experiência / e pôr em palavras a razão da banalidade.” (p. 67). Neste contexto, o mais relevante parece ser a aproximação da poesia à música, a melodias e ritmos indefiníveis: o poeta “[…] lê pautas de música / que tira dos bolsos […]” (p. 17), de noite “[…] surgem / em catadupa melodias acompanhadas / pelos seus ritmos. […]” (p. 71), que parecem perfeitas até despontar a manhã, pois logo “regressa a parvoeira das palavras.” (p. 72). Mas é sobretudo belíssima a forma como enuncia o confronto entre o que temos para dizer e as palavras que encontramos para o dizer: “E se eu escrevesse um poema, finalmente / um poema, em que dissesse que a palavra / poema me soa bem, que me soa tão bem / quanto a palavra taça, a palavra amêndoa?” (p. 47). Um excelente livro, certamente o melhor Helder Moura Pereira depois de Lágrima.

Relâmpago n.º27, Outubro de 2010
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