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A.M. Pires Cabral
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II

Resta-me pouco tempo de vida.
Mas ainda me resta o pensamento,
esse utensílio que, como um novelo de lã,
se vai buscar a cesta da costura
e com ele se fazem agasalhos
de que nenhum carrasco nos despojará.

Penso por exemplo nos arabescos
que tu, cutelo, escreverás com o meu sangue  
– e depois serás incapaz de soletrar.

Penso também que aquele que, unindo-se contigo,
se torna um violento instrumento de Deus
e te há-de manejar segundo as ordens que tem,
no fim da imolação dirá (lavando ou não as mãos):
Fez-se nele, Senhor, segundo a tua vontade.

 
As têmporas da cinza, Edições Cotovia, 2008
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