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Fala do cordeiro ao cutelo
A.M. Pires Cabral
(Sobre um quadro de Josefa de Óbidos)
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Ao Osvaldo Silvestre
I

Eis-me, cutelo: um cordeiro sobre a mesa
aguardando o momento em que a tua voz
falar  mais alto do que a minha  
– o desfecho que se espera de nós quando
os nossos destinos se juntarem num destino só.
 
Eis-me enfeitado de flores para a degola.
Por guarda, tenho um anjo sorridente,
que à primeira vista dir-se-ia compassivo,
mas garante com dolo a minha submissão.
Eis-me: as patas atadas, como quem não deve
caminhar senão em direcção à morte.
Eis-me: oferenda sem delito requisitada por Deus.
 
Que este ar de riso, cutelo, não te iluda:
não espero morte que não seja litigiosa.
Este é apenas o meu modo de inconformidade.

 
As têmporas da cinza, Edições Cotovia, 2008
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