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VASCO GATO
POESIA
N.º 36/37
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De nuvens rasgadas
a tarde
como certos rostos
tomados de febre
que faíscam pelos ermos
sem fito
rostos estalados por dentro
num mundo
de nomes engomados
e a tarde a cavalo
nos meus olhos
obstinadamente
dedicados ao fulgor
de peças mínimas

Um carril
de que não desejamos
saber o fim
e depois
ainda entre nuvens diluídas
a fita que em tempos
cingiu palavras irrepetíveis
agora desbaratadas
no meio do atraso de minutos
que veio frustrar
o conhecimento solar
e a minha voz
no íntimo do espaço

De tudo isto
guardarei a fome
de tudo isto
a viagem é sempre
o melhor lugar
e a tela vespertina
que ainda há pouco
me suspendeu a companhia
dos mortos
perderá eu sei
gradualmente
a sua qualidade de espírito
sem deus
para dar lugar
ao negro opaco
que é a minha mão
parada
nalgum fruto para dois

E será que isto chega
para chamar algo
à carne da nossa insónia?
porque eu sei
que o abalo se sente
também
do teu lado da chuva
no vidro repentino
erguido contra
a gravidade dos pingos
muda tanto tudo
não mudes tu agora
é para ti esta notícia

houve entre as nuvens
uma árvore intempestiva
pela qual podemos subir
seja a noite o que quiser
daqui até
ao calendário inútil
eu e tu
certos rostos estalados por dentro
os únicos
garanto-te
até onde a vista alcança

 
 
Relâmpago n.º 36/37
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