<
VASCO GATO
POESIA
N.º 36/37
<
>

Chegados aqui
à carne incerta de uma vida
despojada de mitos
há uma estrela que se desfia
pelas noites imparáveis
alagando todo o soalho
onde passámos a dormir

lá fora alguém grita
não pode mais
compreendemos esse som
com todos os nervos
raiados pelo espaço
com toda a música insuportável
de ter por ambição
o comprimento de uma rua

isto não é morada que se veja
isto é já só simplesmente
um arremedo de animais
a letra pútrida de uma palavra
mil vezes rasurada
que teima em calcinar a língua
para que nenhum canto

gritos e gritos noite fora
como um alçapão hiante
onde murcha a flor cardíaca
não por inanição
não por falta de fôlego
mas porque do alto desta ruína
cai um frio sideral

máquina de partir dedos
até que não reste um único gesto
insaciável terno solícito
como o pulso levitado
com que uma vez mais
me desmanchas o cabelo
para que nenhuma morte
me fotografe

 
 
Relâmpago n.º 36/37
<
>