de dentro do edredon flutuante
delirava
queria espalhar esmolas
pelos menos pobres
do que ele
o mais pobre dos pobres
mascava pedaços de madeira
as lascas variavam de cor
o estômago deixara de existir
escrevia contra a fome
sem lápis nem papel
escrevia mentalmente artigos
opiniões retumbantes
sobre a vida
ele que estava
um pouco para lá dela
ao anoitecer
arrastava-se para a floresta
mais próxima
para não incomodar
dormia entre lobos
tão famintos quanto ele
as ideias mais originais
iam-se estilhaçando
como vidro
murro sangrento contra o gelo
num filho inexistente
preso logo ali
debaixo da
primeira camada de gelo
laranja fosco
vivia sob
aquele pensamento
inapagável
roer uma lasca
vulva de madeira
algumas aparas brancas
ou um seixo esquecido
nas traseiras do museu
o pão continuava ali
na montra
no seu esplendor cereal
estarrecido
no mesmo lugar onde o vira há horas
o maior pão que a fome pode imaginar
ele era
uma boca repleta
de frases inacabadas
as pessoas comuns
nem se davam ao trabalho
de levantar os olhos
para lhe responder
pisava o chão coberto
de remendos de lata
macerada
pela luz doente
do subúrbio
tudo isto
num livro
feito de
fome
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