Pelos canais que cercam a cidade, a luz de Outono, movida
pelos holofotes de cena, tinge as casas fechadas sobre
a sua memória, como se fossem lençóis cobrindo os móveis
estremecendo ao de leve com os reflexos das águas.
Move tais reflexos hesitando por ruas e praças essa luz:
Essa luz que as águas movem; essa água pela luz
movida abre golfos de sombra no mapa da cidade.
E com a luz se move a harmonia que une os pequenos
incêndios verdes dos jardins, atravessa as pontes quietas,
e sopra nas janelas a errância das nuvens que embaciam
o vidro.
O vidro, polido e liso, sem defeito, concentra, apura
e vitrifica a visibilidade da visão
movida pela luz
que recorta as coisas navegando vítreas
no vidro do dia:
estames coloridos hirtos nas conchas desenhadas
das corolas difusas que o vento contorna e incendeia.
As aves migram entre os mundos separados pelo vidro
enquanto uma dobra de luz aguça e tinge
de branco as suas asas, – rémiges de aves brancas:
Enquanto a criança, accionada por um pequeno e brilhante
sistema de relâmpagos, engolfa os seus dedos
pelos anéis de porcelana.
Dessa porcelana que, mais leve que o ar, no ar sobe
e canta como se fora o eco da respiração do fogo
que dá forma ao vidro, ou como se o eco repetido
de “pequena frase” de um piano fora.
Quase não pintada, quase sem asas nem motor, divina
imaginação terrestre, algo lhe move a delicadíssima
carnação e a vibra como uma aleta não transparente
que, subindo-a como um frémito, lhe escrevesse
lançando-a, movida por sua ausência de peso, um verso
que de porcelana fosse e mais leve
que o ar.
Como? Como “mais leve que o ar?” pergunta a criança
Sentada no osso de baleia; na secção média da
espinha dorsal de uma baleia; submersa num jardim aéreo.
Submersa e subindo na duna de vidro até á flutuação
pálida e pensativa desse verso e dessa porcelana
mais leves que o ar. Mais leves que a luz movida na
coroa dunar. Nome precário, a memória consigo o move,
um verso repetido e insistente, insistente e instingante,
segundo a promessa dos antepassados, a promessa
fielmente sustentada pelo bibliotecário
de oiro.
Segundo o testemunho de Estrabão as bacias do Mondego
e do Vouga eram ricas em ouro de aluvião. Mas
nas outras apenas ferro e chumbo, um pouco de estanho.
A criança folheia os seus sonhos no atlas, e dá-lhe o livro
as palavras com que imagina ver as areias de prata,
os campos e campos de dunas
de formação holocénica;
o cordão dunar da praia.
O bibliotecário espera o último
raio de oiro e põe em movimento o mecanismo
que abre o tecto da biblioteca como se fosse a teia
de um teatro e recebe a noite que arrepia
as lagunas.
O bibliotecário, sim, acolhe entre o povo dos livros
a noite e o seu oiro lunar, a noite que levíssima
modela as areias eólicas nas formas das dunas,
a noite que encandeia o sistema lagunar e sopra dos livros
as aves brancas que inscrevem sobre o mundo
antigo e recente o silêncio constelar.
O bibliotecário então atravessa os longos corredores,
lúgubres e barrocos, e na oficina onde se reparam os livros
vem contemplar uma porcelana mais leve que o ar
e a sua assinatura inscrita, pronunciada impronunciável
DVRm/ O sô/ BRe // flVR – EstAs / de PEDRA – I – PVRPVRA |