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" Q U EO D I AO? OQ U E OO L H A RO? "

 

Cheguei demasiadamente tarde
e já todos se tinham ido embora,
restavam papéis velhos, horas mortas,
identidade, sujidade, eternidade.

Comeram e beberam o meu
corpo e o meu sangue; e, pelo caminho, a minha biblioteca,
e escreveram a minha Obra Completa;
sobro, desapossado, eu.

Resta-me ver televisão,
votar, passear o cão
(a cidadania!). Prosa também podia,
e lentidão, mas algo (o coração) desacertaria.

Dar um tiro na cara como Chamfort?
Tornar-me aforista ou ainda pior?
Mudar de cidade? Desabitar-me?
Post-modernizar-me? Experienciar-me?

Mas com que palavras ou sem que palavras?
Os substantivos rareiam, os verbos vagueiam
por salões vazios e incendiados
entregando-se a guionistas e aparentados.

Cheira demasiadamente a morte por aqui
como no fim de uma batalha cansada
de feridas antigas, e eu sobrevivi
do lado errado e pela razão errada.

“Que dia? Que olhar?”
(Beckett, “Dias felizes”)
Que feridas? Que estandar-
te? Que alheias cicatrizes?

Estou diante de uma porta (de uma forma)
com o – como dizer? – coração
(um sítio sem lugar, uma situação)
cheio de palavras últimas e discórdia.

Manuel António Pina
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Relâmpago nº10
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