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CRIANÇA DE MÃO
JOSÉ RICARDO NUNES
POESIA
N.º 34
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Vejo-me estendido no buraco
que abriram para mim e onde me entretenho
a dar comida à vida. É a última tarefa
que me cabe cumprir. E vou adiando quanto posso
o fim. Depois não sei se partirei
de vez, se lograrei voltar, e aí
não sei o que irei encontrar.

Levanto torrões, deito água, amasso
um pouco. Idealizo
figuras que não se parecem
com as formas estranhas que me caem
das mãos. Os dedos
enfiados no vaso chegam a tocar
naquele veio mais profundo
que atravessa o magma. Sei que depois
irá a terra remexer
em mim por dentro
como faço agora com ela, num verso
e num vaso, cheio de
paixão.

Depois o silêncio absoluto
ou quase ou não fossem
os vermes, metódicos e mandibulares, desmantelando-me.
Ruído ausente, sentido,
ou uma louca correria, passando por alguns
vermelhos para me compensar
do que perdi, cenário este apenas concebível
naquela francamente improvável segunda
hipótese da ressurreição.

Em qualquer dos casos, menos tentações
haverá de dar o dito
por não dito, seja a cada passo, seja
aliviado para sempre. Para sempre, claro,
é apenas uma força de expressão e um bom exemplo
do que tenho estado para aqui a dizer.

Aqui é um jardim. Se aqui
voltar, com o alento e a força que já vi
alguém
humildemente propagar, não será
para repetir isto
que digo. Bastar-me-ei com a terra
em que entretanto me fizerem
as mãos metidas no vaso. E não
me irei distrair com estas composições em que me vazo
para me entreter e adiar.

Se aqui voltar, juro que não
me irei aborrecer. Voltar para fazer
tudo de novo e ter algo sério com que me ocupar.
Voltar aqui, sentar-me no banco, enfiar
os dedos na terra de um vaso e remexer
até perder todo o significado ser
e ser igual aqui tornar ou aqui me deixar
extinto, é situação que não justifica adiamento
nem constitui motivo de entretenimento
nem tão pouco me reserva qualquer merecimento.

É uma casa com três andares,
relvada à frente e cimentada atrás.
Da varanda em que se vê o mar de dia
e de noite as estrelas, pode-se estar
perto
não sei bem de quê, não de mim,
com certeza, que pondero no buraco a decisão
depois de apresentar meus argumentos
e me disponibilizar como alimento.

Subo as escadas e beneficio um dia
daquela conjugação. Ir-me de vez
equivale a voltar aqui, agora,
tentando repetir o que ele fez.
Enfio, pois, até ao fundo os dedos e toco
nas raízes do hibisco e ato-me
às raízes, morto e novamente
vivo ao mesmo tempo.

Eis uma palavra, paixão, que merece
concordâncias. Se aqui voltar,
será de vez. Se me consumar,
em vez de me consumir,
será agora. Vejo-me estendido
no buraco. Enfio as mãos na terra. Paixão, sim,
com as demais que se alinham
e todas aquelas que não enfeitam o jardim
mas prontamente se adivinham
e liberto de mim. E depois,

depois não sei.

 
Relâmpago n.º 34
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