<

O Peregrino Só à ré vigia
o rasto escuro do barco, que o barqueiro
à popa impele no rumo da corrente.
Vultos são os demais passageiros,
que o nome diz bem que passam.
Entre o tecto de rocha e o solo de água
passam pelo frio exterior e o medo íntimo,
da nascente à foz do rio secreto,
tal como passam na sua vida evidente.
O corpo dói, mas a alma está serena.
E a Criança, de grandes olhos estáticos,
ama para sempre a Terra e a água,
com um Amor sem dor e sem o medo.

Tão lentamente corre o barco quanto
o barqueiro o molda ao correr da água
calmo e contínuo, como sangue da terra.
Ouvem o rumor grave e agudo
do caudal, ora estreito ora mais largo,
e o ritmo irregular de grossas gotas de água,
que caem das rochas, a marcar o Tempo.
E o Tempo é o antes e o depois
que assinala cada momento da vida.
A Criança olha o vulto do barqueiro,
e o barco pára, balança no ar negro;
um dos braços do vulto aponta então
as mil cordas de gelo, que brilham e pendem
sobre as apagadas cabeças de sombra.
Uma réstea de luz vem de nenhures
trazer súbito brilho ao gelo e aos olhos.

O Peregrino Só afaga o gelo obscuro
e a Criança olha-o assombrada,
não sabendo que também o Amor o move
a ter os gestos do amor nas suas mãos.
Afaga a Terra, no seu corpo de água,
de ar, de rocha, ali presente no âmago,
e à Terra entrega toda a sua esperança.
Agora, o barqueiro vago sustém com força
à proa o barco, num caudal mais rápido,
e os vultos anónimos murmuram,
talvez de puro medo, que não pode
encontrar na terra o seu consolo.

A pequena luz longínqua que rasa o tecto
é cada vez mais longínqua, mínima,
e o caudal veloz aumenta o ruído,
numa oclusão das rochas, que forma
um túnel estreitíssimo. Só a Criança
e o Peregrino Só confiam na possível
passagem para o espaço da luz.
Os vultos gritam e penam, no tempo

do trânsito da treva para a luz,
porque lhes foi dado o sofrimento
de um Inferno na Terra, que viveram antes.

Não sabem onde termina o rio.
Mas a Criança e o Peregrino esperam
depois da treva o novo Sol diurno.
Os vultos dos peregrinos estremecem,
duvidam de que o percurso subterrâneo
os conduza uma vez mais à Imagem.
De mãos postas para aquietarem o espírito,
com o coração dorido do passado,
não crêem já que aquela áspera noite
os leve por fim ao claro dia ungido.
Qualquer palavra ou murmúrio produz ecos
que fogem e se repetem no túnel longo,
regressando ao início do percurso
onde os vultos desejam regressar,
tão saudosos da Imagem e dos ritos.

Mas o terror faz nascer de novo a alma,
em fé e caridade todos os dias,
mesmo os de morte e os da perda.
A água corrente agora escorre com ímpeto,
ansiosa por chegar ao fim da treva,
pois um halo mancha o ar distante de cor.
"Almas, calai-vos, e sede amantes sempre,
entre vós e entre todos no novo Mundo",
diz-lhes o Peregrino Só, sorrindo
para a Criança e para o Sol futuro.
Como de pedra em pedra ou abismo em abismo,
os vultos dobram-se e os olhos pedem
a consolação que viram e veneram,
essa Imagem corpórea, táctil, próxima,
que dia a dia os espera na Basílica.
A Imagem representa o imo abstracto
das figuras invisíveis e visíveis,
e é bela porque os olhos a tocam.
A criança que não sabia ver o Mundo
amou esse poder de olhar o real
com a pura coincidência entre o que é visto
e o que está a ser representado nisso.

Após a noite e os brilhos, o imenso Sol
irrompe sobre a água, a escorrer luz, que vem
pelo túnel e ilumina os rostos.
A sombra do barqueiro que lança a corda
para o cais de luz, agora é um corpo claro
quase translúcido como o de um novo Anjo.
"Ó fonte desta vida, Sol de alba,
imagem de próprio, luminescente",
entoou o Peregrino, entre os peregrinos
que desembarcam agora, ao fim da viagem,
purificados no medo e no silêncio.
Era no meio do século, quando a Terra
girava entre o horror e a harmonia.

 

Lourdes e Betterram, 1950
Lisboa, 1995

Fiama Hasse Pais Brandão
<
>
 
 

Relâmpago nº3

<
>