Porque me apareceu
a visão renovada
do terror antigo com o sentido novo,
porque me escolhi, entre as Crianças,
para narrar a Peregrinação,
com a letra que é a do meu tempo
e o espírito da infância com os seus Olhos?
E não esqueceu o Ouvido essa Criança,
entre sinos e preces e gemidos,
e, um dia depois, na punição vivida
até à recompensa, em que soou no fim
a água a escorrer liberta para o Sol.
Agora pensei
que os que sofriam ali
eram os que foram traídos neste século,
em que Moloch prometeu indústrias
e trabalho e os ócios para todos.
Vi-os com o seu esgar triste e cúpido,
olhar o frontão da capela iluminada,
e escutei o Homem Só a dizer alto
que lhe haviam tirado o Deus antigo
para ser mais livre e seu.
Porque aquela
de quem era filha
me levou como peregrina outrora
onde não soube ver senão os rostos
e os percursos que a memória trouxe,
sou hoje a narradora, até ao milénio,
desta peregrinação e da catábase
com que me torturo e salvo, nestes versos,
em nome dos homens do meu século.
Oravam e cantavam
todo o dia,
com os corpos lassos sobre o chão e as pedras,
mas não esqueciam as suas camas pobres,
tal como eu não esqueci quando dormi
na Europa, criança, os colchões desfeitos,
paredes exangues, as portas sem os gonzos
e a poeira espessa sobre todos os soalhos.
Era no meio do século, depois da Guerra
e muitos dos peregrinos olhavam só
a Imagem santa em louvor da Paz.
Aquele que
é benigno para com os outros,
o que ama as nobres raças dos homens,
antiquíssimas todas, naturais,
o que dá aos seus o perdão do mal
e tira do seu saco o grão para os outros
é hoje o santo, pois cada século
tem os seus próprios sacrifícios e graças.
A Criança
vê, mas não pergunta, então,
como sofrem as pessoas, expondo
as mãos chagadas, os membros fracos,
o corpo solitário e abandonado
ao sono sobre o chão de pedra.
E só na opaca noite a Criança soube
ver um fulgor da condição humana,
a centelha da Vida entre tanta dor.
Pela escuridão corre um longo rio,
ou uma onda de luz e depois outra,
dos peregrinos que sobem e logo descem
a dupla rampa diante da Basílica.
A Criança, presa pela mão que a gerou,
vê que os corpos doentes e mortais de dia,
transfigurados na noite, são celestes
e também portadores da luz terrena.
E a peregrinação junta o dia e a noite,
como nunca se juntaram almas ou os astros,
indissoluvelmente no Desejo
e iguais na amargura e na esperança.
* * *
O Sol, ao terminar
a noite, abriu
caminhos pela Terra amanhecendo.
Mas a Criança e o Peregrino Só tomaram
o caminho árduo e profundo, que mergulha
no ventre da montanha e a atravessa,
um rio negro e frio, que só no fim,
depois da escura viagem temerosa,
sai ao Sol, que já banha o Mundo.
Ainda no crepúsculo
matinal,
encaminharam-se para a gruta, de onde
parte o pequeno barco que os levará
pelo oculto subterrâneo rio.
O som do bater de água era sereno
e o balançar no cais tão calmo e lento.
A Criança desejou o sol da água,
mais forte, imenso, em toda a Terra.
Ouvi-lo-á no fim, quando a luz do dia
ressuscitar quem morreu na treva.
Ela, os vultos e o Peregrino entram
no barco preso no cais negro, e a sombra
do barqueiro desamarra-o e entra também.
Vão
por um túnel, escavado, século a século,
na escura rocha pela Natureza,
que abrira aquele rio de luz na Terra,
de um lado a outro lado da montanha,
e o escureceu, secreto e temível para aqueles
que querem reacender no seu corpo a Vida.
A Criança vê a água e a terra unidas,
tão próximas e insondáveis,
que a custo deixam passar o barco
dos vivos em transfiguração, todos,
aos olhos infantis, apenas vultos,
dobrados pelos ângulos das rochas,
sem riso nem choro, que no exterior
já vira sem saber o que era ver.
Ali, o puro ver é só olhar.
O interior e o exterior são unos
porque a penumbra enche os olhos e a alma.
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