P E R E G R
I N A Ç Ã OO EO
C A T Á B A S E
Começa a alba, a luz,
existe a harmonia
F.H.P.B.,
(Este) Rosto, 1970
A Criança
antes de ver não soube ver
a aurora tingir e o dia amanhecer.
Só os Peregrinos viram o dia cedo,
certo para olharem a Imagem com os seus olhos.
O Homem que viera por veredas,
há muito que chegara ao lugar santo.
Traz a capa, o bornal e a sua sede
para dessedentar na fonte do milagre.
É ateu, mas ama o santo espírito
que põe na Imagem a sua aura.
Imagem de face rósea e branca fronte,
de olhar de porcelana, sempre fixo,
mas móvel e amante, tanto quanto o amor
do Peregrino Só e dos peregrinos
deseja aquele olhar sobre o seu peito.
A Imagem era
um enigma que sorria
para o Peregrino; e para os peregrinos
da fé e das dores era a mãe segunda,
que se vê sem os olhos e que se ouve
sem a fala e o chamamento.
Chamaram-na só com o seu desejo,
igual ao da Criança que já vira
o amor antes de ver o Mundo.
Tinha no cabelo um véu de organza
descendo pelo corpo, sobre a túnica,
os pés calçados de ouro sobre a meia-lua;
a mão era bela, alta no ar,
com os brancos dedos postos em sinal.
Veredas são
caminhos abertos, livres,
entre florestas inóspitas ou suaves
e são símbolos de ruas de escassez
de cidades com os seus bairros de desgraça.
O século do Homem Só era este século,
em que o trabalho brilhou como uma estrela
e depois doeu com a cruz da miséria.
Sou eu que
sou Criança, então, que vejo
a imensa massa dos peregrinos e o Homem
que veio do fulgor das cidades de Europa,
com a roupa rota, o cajado na mão,
a miragem e a esperança no seu espírito.
Ao raiar da manhã, pessoa a pessoa,
enchia-se o largo diante da capela,
como se o Espaço as amasse e esperasse,
para vibrar e cantar todos os hinos.
Foi no meio do século que vi os peregrinos
de rastos, de mãos postas, de pés nus,
à minha roda, e o Mundo a gemer.
Como podem
andar o choro, a doença, a dor?
Como vêm por estradas, a arrastar-se,
mulheres encurvadas que puxam os filhos
e os homens que carregam a carga do pão?
Vieram um a um, e grupo a grupo,
por terras de fartura que, tal como as cidades
vão secar no fim do século. Todos têm
consigo a sua dor e a dor futura.
Ela, a Criança, viu-os na infância
e não soube quanta amargura e quanta dor
em si levavam os peregrinos vivos.
Caminham, sem
desfalecer, pelos montes
pirenaicos, nas rochas, nos regatos.
Atravessam os longos vales e, nas encostas,
param a louvar o Céu. São eles os veros
peregrinos, aqueles que eu vi,
numa manhã, no chão genuflectidos,
para minha mágoa insciente.
Porque me levaram àquele lugar de pena,
quando eu não sabia ver os sentimentos,
mas os rictus das caras e dos corpos,
como na Pintura? Para que eu hoje
procure o seu percurso ou os veja andar
entre a vida e a morte, naquela Praça
diante da Basílica e, ao cair da noite,
num imenso cortejo de luzes móveis
todos com as pequenas velas em seu copo
de papel que as ampara. Ah, mas como eu sei
que temi aquelas luzes vagantes,
não sabendo que era deste Mundo nosso
a luz dos que esperam. Bendita a visão
que me leva até ao Homem Só,
apartado, silente e misterioso.
Tem o rosto marcado com um Tau,
mas é um homem que é da sua época,
aquele que não quer ser miraculado
senão na Terra e no sangue.
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