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MEIO-TOM
FERNANDO PINTO DO AMARAL
POESIA
N.º 35
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Perguntas a ti próprio outra vez
até quando resiste
a planta venenosa a que ainda chamas
coração__Por quem dobram
os seus últimos sinos? Ainda sabes
morrer todos os dias
para de cada vez ressuscitar
um pouco menos tu? Conseguirás
ser de novo um fantoche
marioneta__boneco articulado
fazendo ressoar aos quatro ventos
essa voz de ventríloquo?

Perguntas a ti próprio se ainda tens
coração__Aprendeste
como pode ser falsa essa ingénua
metáfora__O que existe
é um músculo__O resto
são impulsos eléctricos__fenómenos
da física__Até isso
que dizem ser a alma é hoje apenas
química
laboratório vivo
chama-se por exemplo dopamina
serotonina
moléculas assim__mal doseadas
em ti__nessa mulher__em tantos outros
erros
um albatroz à toa num convés
misfits no deserto do Nevada
gente sempre tão gauche__criaturas
erráticas__errantes__organismos
mutantes__humanóides
que riem choram gritam
fora do tempo cada vez que os seus
corações
batem descompassados sempre um pouco
fora do tom__fora do ritmo__quando
ouves a tua__as suas vozes__esses
sustenidos__bemóis
com um meio-tom a mais__um meio-tom
a menos neste mundo

 
Relâmpago n.º 35
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