Sucedeu que
um dia, um domingo, um benévolo cidadão deu um tiro
de caçadeira no covardola, e eu conformei-me porque a minha
comiseração por ele tinha inescrutáveis limitações.
Outro benévolo cidadão ou, quem sabe, a mesma alma
compassiva incumbiu-se, pouco depois, de libertar deste mundo, pela
mesma forma, a presença da fêmea que eu adquirira.
Reduzida a família desavinda a um casal, talvez eu conseguisse
ficar com filhotes melhores que o desaforado pai. Ela pôs
os ovos num sítio inacreditável, num tosco buraco
escavado junto à via pública, mas os ovos miseravelmente
estavam goros. Nem para fazer filhos! Razão tinha afinal
Ghirlandaio o meu era tão detestável como o
dele, ou ainda pior.
A fêmea teve uma complicação súbita,
a que os veterinários dão um nome, e apareceu morta.
Espiando tudo à volta, ele continuou, de noite, no cimo do
telhado, a lançar aqueles melancólicos e desesperados
gritos, e eu tinha de suportá-lo.
Em todo o caso, a solidão transformou-o. Passou a visitar-me,
não só ao cair do dia, mas também de manhã.
Bem entendido, eu dava-lhe o seu pão, e ele, com o passo
de um sabido cortesão de Luís XV, olhava-me agora
(parecia) sem petulante má vontade. Um dia sentou-se à
porta da cozinha, esperando. E no outro dia veio também,
com os olhos aquietados e tristes. Eu contemplava-o estupefacto.
Não chegou a vir pela terceira vez comer o pão que
começara a enfastiá-lo, ali sentado, sem medo, quase
a meus pés, como se dissesse: não tenho culpa de ser
como sou. Morreu nessa noite, perto da nossa casa. Deitara-se à
porta porque viera despedir-se, e nem isso eu merecia, porque não
o amava, embora ele passasse a noite, vigilante e atormentado, no
alto do telhado, defendendo-me da furtiva aproximação
dos tigres.