O OP
U N G E N T E OG R I T O
A dois passos
do Arno, na igreja dOgnissanti, encontrei um afresco de Ghirlandaio
no fundo do refeitório conventual, a famosa Última
Ceia. Impressionou-me ver, em cada extremo da pintura, dois animais:
do lado direito de Cristo, uma pomba; do lado esquerdo, onde estava
Judas, um pavão desafiante e belíssimo.
Pavão
nunca fora criatura que conhecesse de perto. Nalguns jardins, divisava
o elegante ser que possuía na cauda (e isso jogava a seu
favor) os cem olhos de Argos. Para Ghirlandaio o bicho devia
pertencer à família dos que se afastam de Cristo,
dos que o negam. Pouco se pode esperar de quem se pavoneia, e fica,
por último, arrastado e bufante. Em pleno Renascimento, Ghirlandaio
não amava certamente esses presunçosos, como os dicionaristas
modernos, que acumulam as citações sobre a soberba
arrogante dos pavões, e dos homens (não são
poucos) que solenemente os imitam.
Tratei de me
documentar, e comecei por ter sorte, pois ofereceram-me três
ovos de pavoa. Os pavonitos cresceram com os irmãos de outra
espécie, e a mãe adoptiva, uma sábia pedrês,
tratava-os como se fossem do mesmo sangue. Andando o tempo, deixaram
de dormir no galinheiro, perante a compreensão matriarcal
da mãe galinha. Antes do pôr-do-sol, voavam, com incrível
leveza, para cima de um enorme zambujeiro, a larga sombra da capoeira.
Dos ovos saíram
dois machos e uma fêmea. Tímidos ou receosos, aí
pelos três meses, começaram a evitar-me. Para prevenir
óbvias complicações, na minha ignorância
comprei uma pavoazinha da mesma idade. Mas um dos machos era terrível,
apoderou-se das fêmeas, tratava o irmão como um miserável.
Dei-me então
ao cuidado de consultar literatura sobre o intrigante insolente
que eu albergava, e fiquei abismado. Na tradição cristã,
começou por ser um símbolo da imortalidade, o azul-turquesa
e os olhos da cauda espelhavam o fulgor do céu estrelado,
mas caiu em desgraça, passou a constituir, na Idade Média,
a personificação da soberba, um orgulhoso inimigo
de Cristo. Todavia, pavão na Índia era e é
animal sagrado, tratava-se do melhor guarda dos rebanhos, pois fica
nas árvores de noite para alertar contra o avanço
subtil dos tigres. Num dos seus comentários sobre as Fiabe
Italiane, quase tão interessantes como esses contos tradicionais,
Italo Calvino fala no cupo grido do pavão. De
noite, é realmente dos gritos de guerra mais aflitivos, mais
alarmantes.
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