FAREWELL
____________________________________in memoriam
1. O poema.
Cito, na íntegra, o belíssimo primeiro poema – ou primeira parte? – de Farewell Happy Fields (1992), de Manuel António Pina:
Entre a minha vida e a minha morte mete-se subitamente
A Atlética Funerária, Armadores, Casa Fundada em 1888.
A esse sítio acorrem então, aflitíssimos, o teu vago sorriso
e a vaga maneira como dizes os esses;
vêm de muito longe e chegam incompletamente
ao pequeno vulnerável sítio onde
toda a minha vida e toda a minha morte,
quando a minha última recordação atirou já com a porta
e tudo está acabado até a tua respiração
na cama ao meu lado,
e também tu estás morta,
duma forma que já não me importa.
Vamos então os dois outra vez
ao longo de certas ruas sombrias e de certos dias
e sorris e falas alto; está calor mas tens as mãos frias,
compramos coisas, visitamos
talvez algum último amigo
sem sabermos que eu já não estou vivo.
Poderia ter sido de outro modo?
Poderiam ter sido outras duas pessoas
vivendo a minha e a tua vida, morrendo a minha e a tua morte?
(Mesmo o armador, poderia ter sido outro?)
Aparentemente foi por pouco;
se fosse um pouco mais tarde ou um pouco mais cedo,
se eu não tivesse chegado a casa cansado,
se a louça não estivesse por lavar
e a janela da sala de jantar
não estivesse fechada, se o mundo não tivesse acabado,
nem tu tivesses ido ao supermercado,
e se eu não estivesse cheio de medo.
Agora estou voltado para cima,
para onde cantas ainda há muito tempo.
Se calhar isto (alguma coisa) vai demorar mas já não me impaciento.
Voltamos, tu e eu, ao mesmo jardim desflorido
onde eu morro sozinho
e conversamos comigo
como com um desconhecido.
Que diremos agora um ao outro?
É tarde. Ainda há um momento
me apetecia conversar, agora estou outra vez tão cansado!
Reparaste como o Outono este ano veio por outro lado,
como se fosse pelo lado de dentro? (1992: 166-167)
Junto deste poema, deixarei tantos enigmas por resolver. Nada direi, por exemplo, dos incontáveis jogos intertextuais: com John Milton no título Farewell Happy Fields e na epígrafe do quarto poema: “Farewell happy fields / where joy for ever dwells: hail horrors… / Milton, Paradise Lost” (172); com T. S. Eliot no verso “Vamos então os dois outra vez”, que ecoa o “Let us go then, you and I” de “The love song of J. Alfred Prufrock” (Eliot 1917: 8); mas também com Pessoa na data à clé da “Casa Fundada em 1888” (aliás, intertexto assumido numa entrevista – ver Pina 2011); e quem sabe quantos outros (propositados, conscientes, talvez mesmo inconscientes) laços intertextuais? Deles nada direi, mas já sei que tudo quanto disser será texto sobre texto, intertexto, e que a própria morte aqui é dita, que ela é um dizer, que ela é literatura.
Nada direi – ou pouco – do eu e do tu, do diálogo, de certo coloquialismo subtilmente trabalhado; nada da condição tardia das coisas – calma é apenas um pouco tarde –; nem do fim do mundo – não é o fim nem o princípio do mundo –, nem do “mundo acabado”. Sobretudo, nada direi de um suposto mundo extra-literário, empírico, “real” (palavra suspeita, mais que todas, em Manuel António Pina), que tivesse motivado a escrita do poema. Não sei, não posso saber, não poderia nunca: a morte que se morre aqui, actual, virtual, actual e virtual, é uma morte construída no poema, e nesse sentido ela é inteiramente enigmática no mesmo instante em que o poema nos é inteiramente oferecido, e nada nele se esconde.
Tentarei dizer um pouco, porém, sobre o tempo neste poema. Tempo da morte, claro. Mas um misterioso tempo – ou tempos. Factual, presente: “Entre a minha vida e a minha morte mete-se subitamente / A Atlética Funerária”; final, cessativo: “quando a minha última recordação atirou já com a porta”; definitivo, sem apelo: “e tudo está acabado até a tua respiração / na cama ao meu lado, / e também tu estás morta, / duma forma que já não me importa”. Tudo acabado, consumatum. Não sei se diga: perfectum. Mas é preciso ir mais longe: “Vamos então os dois outra vez”, quando? qual vez depois de qual outra vez?, “e sorris e falas alto”, no presente, “visitamos / talvez algum último amigo / sem sabermos que eu já não estou vivo”.
Suspendo a leitura. Recapitulo, de forma trivial: existe um sujeito, um anúncio da morte futura, e contudo os tempos dos verbos são o presente e o pretérito. Existe anúncio (como assim? pressentimento, convocação, profecia?), mas nenhum futuro verbal: segundo os tempos dos verbos, a morte está a acontecer, ou já aconteceu. E se já aconteceu, o eu do poema, aquele que diz, que está vivo, é também um eu que está morto: uma voz viva, já morta, ou morta, ainda viva. Coisa impossível, claro: nenhum enunciador pode assumir um enunciado como “eu morri”; ou diz, mas não morreu, ou morreu, logo não diz. E contudo, no enigma deste poema, acontece o impossível: eu diz, agora, que morre, agora, ou já morreu, antes, mas vai, vamos, sem saber, como se, isto.
Nenhum futuro verbal; o presente e o passado existem, mas são logicamente indefensáveis. Talvez seja preciso pensar tempos nos interstícios dos tempos: um passado do futuro: eu terei morrido, etc. Mas o poema não usa tais compromissos realistas. Releio: “Agora estou voltado para cima”, “já não me impaciento”, “Voltamos, tu e eu, ao mesmo jardim desflorido / onde eu morro sozinho / e conversamos comigo”. Sim, entretanto surge o futuro – “Se calhar isto (alguma coisa) vai demorar”, “Que diremos agora um ao outro?” – mas sempre relativo a esse presente nuclear que não pode ser realmente real, que só pode existir depois de (quando?) o mundo ter acabado.
2. Quem diz o poema?
Na verdade, este estranho tempo entre os tempos, fora dos tempos, depois do fim do tempo, atravessa toda a obra de Manuel António Pina. Seria necessário uma longa demora para ver como uma rede de verbos, advérbios, conjunções inventa um tempo impossível e, simultaneamente, rigorosíssimo.
Dois exemplos, apenas. No inicial Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo Calma É apenas um Pouco Tarde, lê-se: “Tento ser objectivo: / em nenhum lugar morri menos de 3 ou 4 vezes” (Pina 1974: 22). Parafraseio, com liberdade: eu, que enuncio, que estou vivo, eu cuja enunciação depende da realidade da minha vida, enuncio que morri, pelo menos 3 ou 4 vezes, pelo menos, talvez mais, talvez 5, 6, 7, 1000 vezes, infinitas vezes. Ou então, em Cuidados Intensivos, vinte anos depois,
sou também lembrança
de alguém em algum sítio,
onde não alcança
o que, lembrado, sinto.
E aí repousa já
tornado esquecimento
um dia que virá
há muito, muito tempo. (1994: 222)
Na estrutura da quadra, no jogo conceptual do paradoxo, Pina decerto herda a lição de Pessoa. E de novo a ordem cronológica das coisas e dos actos – lembrar, alcançar, sentir… – se encontra fora dos gonzos, como quer Hamlet: o dia “repousa”, porém “virá”, porém “há muito, muito tempo”. Presente, futuro, passado – mas também enunciação agora e morte outrora –, todos os tempos se dobram, incluem, multiplicam, reflectem.
Eu, que enuncio, morri; ou já estou morto; e vejo-me morto através daquilo que enuncio, o poema; morro no tempo inaudito que o poema inventa. Como assim – como se pode no poema imaginar a morte própria?
E mesmo, antes de mais: é possível imaginar essa morte? É legítimo? Num texto inacabado, póstumo, Paul Ricœur ataca a oportunidade de um tal esforço da imaginação. Cito Vivo até à Morte: “É o morto de amanhã, no futuro anterior, por assim dizer, que eu imagino. E é esta imagem do morto que eu seria para os outros que quer ocupar todo o espaço, com a sua carga de questões: o que são, onde são, como são os mortos? / A minha batalha é com e contra esta imagem do morto de amanhã, desse morto que serei para os sobreviventes.” (2007: 35). Contra este investimento na fantasia da morte, Ricœur prefere defender uma ética da vida, aquilo a que chama boa disposição. A morte, na verdade, não pode ser representada por um vivo: “Só os fantasmas se recordam da morte” (51).
Talvez se possa contrapor a este projecto de Ricœur uma narrativa de Maurice Blanchot. Refiro-me ao tardio O Instante da minha Morte (1994). Resumo: o narrador recorda um episódio do fim da II Guerra Mundial, na França ocupada; durante a retirada dos alemães, numa guerra que já sabem perdida, ele mesmo, narrador, ia ser executado (esta forma verbal complexa – “ia ser executado” – deve traduzir a complexidade dos tempos, da actividade e da passividade, do actual e do virtual). Por circunstâncias que não explorarei aqui, a execução não chega a acontecer; descrevendo-se na terceira pessoa, o narrador diz: “aquele que os Alemães já tinham na mira, não esperando senão a ordem final, experimentou então um sentimento de extraordinária leveza, uma espécie de beatitude (nada, porém, que se parecesse com felicidade) – alegria soberana? O encontro da morte e da morte?” (1994: 13). A morte não vem mas, desde esse instante, e para sempre, ele “ficou ligado à morte, por uma amizade sub-reptícia” (ibidem). Em suma:
Permanecia [...], como no momento em que o fuzilamento estava iminente, o sentimento de leveza que não conseguirei traduzir: liberto da vida? o infinito que se abre? Nem felicidade, nem infelicidade. Nem a ausência de temor e talvez já o passo/não-passo para-além. Sei, imagino que este sentimento inanalisável mudou o que lhe restava de existência. Como se a morte fora dele não pudesse doravante senão embater contra a morte nele. “Estou vivo. Não, estás morto.” (1994: 19-21)
Passo seguramente difícil, este, agora não só pelo cruzamento de tempos mas também pela multiplicação de vozes, e portanto de pessoas: eu lembro, ele ia ser executado, eu estou vivo, tu estás morto. Quem diz, quem focaliza quem diz, quem devolve o reflexo invertido (quem reivindica a vida, quem diagnostica a morte)? Lendo esta narrativa de Blanchot, Jacques Derrida lembra a oposição necessária entre a testemunha viva e a morte testemunhada: apenas o sobrevivente pode testemunhar a morte do morto, um morto não pode dar testemunho da sua própria morte. Contudo, é precisamente esse pas au-delà do paradoxo que a narrativa de Blanchot propõe: o vivo dá testemunho da sua morte. Cito Derrida: “o que vai vir, o que está na iminência de vir sobre mim, eis o que terá já tido lugar: a morte já teve lugar. Posso testemunhá-lo, porque isso já teve lugar. Contudo, esse passado que testemunho, a saber, a minha própria morte, não esteve nunca ainda presente” (1998: 49).
Eis, de novo, um tempo paradoxal, cruzamento entre actualidade e virtualidade: “A morte acaba de acontecer desde o instante em que vai acontecer”, diz Derrida (67). Ou, como escreve Manuel António Pina, “em nenhum lugar morri menos de 3 ou 4 vezes”: eu testemunho, agora, que morri – estou vivo, enuncio, não, estás morto, morreste, mas então quem dá testemunho de qual morte?
3. Quem pode dizer o poema, a morte?
Estar vivo (enunciar) é poder ter morrido (estar morto). Estar vivo é estar actualmente vivo contra toda a morte possível. Eu (que enuncio, agora, na minha vida) imagino a minha morte (tácita; futura, presente, passada; ficcional). A minha enunciação viva convoca – ou revela – a minha morte possível em cada instante, 3 ou 4 vezes por cada instante passado, e 3 ou 4 vezes por cada instante futuro, “quando a minha última recordação atirou já com a porta / e tudo está acabado até a tua respiração”. Dito ainda de outro modo: este gesto de imaginar a morte futura, com os verbos no presente ou no pretérito, e de imaginar o passado, revelando as 3 ou 4 mortes morridas em cada instante (estou vivo agora, não, morreste 3 ou 4 vezes outrora) – este gesto é necessário para testemunhar a própria vida presente.
Contudo, insisto, a vida de quem? o testemunho de quem? e aquele que morre é também aquele que testemunha? ou acaso – eu estou vivo, não, tu estás morto – um imagina, outro testemunha, o terceiro morre?
Lembro-me de um poema em prosa em Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança:
C. tinha longos cabelos escuros e uma voz do Norte, levemente cantada. Lembro-me de isso e, ainda, de algumas poucas palavras e de uma respiração ao telefone respirando. Telefonara para dizer-me, entre mais coisas, que o melhor seria eu fazer como se ela, e eu também, tivéssemos morrido há muito e lembrar-me de tudo (já não me lembro de quê) como de um vago sonho sonhado por outras duas pessoas, ou como se eu próprio fosse outra pessoa lembrando-se. […] Assim morremos os dois, tu e eu. Como poderíamos nós, ao telefone, saber que falávamos já, distantemente, de dois estranhos? (Pina 1999: 264)
Existem aqui eu e C.; mas também, logo a seguir, eu morto e C. morta: “o melhor seria eu fazer como se ela, e eu também, tivéssemos morrido há muito”. Mas é ainda mais complexo porque, uma vez mortos, “o melhor seria [eu] lembrar-me de tudo”, e agora temos eu lembrado e C. lembrada. E depois: “lembrar-me de tudo [...] como de um vago sonho sonhado por outras duas pessoas”, mas quais?, “ou como se eu próprio”, quem?, “fosse outra pessoa”, qual?, “lembrando-se”. Interrompo a leitura, antes de acrescentar todos os pronomes e indecifráveis tempos verbais de “Assim morremos os dois, tu e eu. Como poderíamos nós, ao telefone, saber que falávamos já, distantemente, de dois estranhos?”.
Outro exemplo, agora de Aquele que Quer Morrer. Título imediatamente ambíguo, porque remete para o Evangelho segundo Marcos, 8:35 – cf. a epígrafe “Aquele que quer conservar a vida perdê-la-á”, glosada nos versos “Aquele que quer morrer / é aquele que quer conservar a vida” (Pina 1978: 68), onde a morte é sacrifício, expiação, redenção –, mas remete também para Nietzsche, onde o último homem, aquele que quer morrer, é também o derradeiro, e mais ressentido, escravo dos valores. Desse livro, leio também um excerto de um poema em prosa:
Já estava tudo acabado e ainda estava a começar! Ou imaginei tudo ou não imaginei tudo ou imaginaste tu tudo. Ou imaginou-nos tudo, a ti e a mim. Ou imaginou. Estou certo de isto ou de qualquer coisa. De que lado se passou? Isto é, de que lado estou, ou estava, ou estavas tu, ou estava tudo? Terão sido outras duas pessoas? Uma tarde, uma noite, e depois, já de este lado, outra tarde (oh, que terríveis quatro horas de essa tarde!). Determinei, pois, dois lados: um, admitamos, Real; outro Virtual. (1978: 92)
Quem diz, quem testemunha, quem imagina (quem morre)? “Ou imaginei tudo ou não imaginei tudo ou imaginaste tu tudo. Ou imaginou-nos tudo, a ti e a mim.” Radicalmente: “Ou imaginou.” Farewell Happy Fields inventa uma avaria dos tempos; Aquele que Quer Morrer inventou, antes, esta avaria da estrutura da acção, que aqui perde qualquer sujeito e se instaura como acto sem agente, impessoal. Numa desconstrução semelhante, relembro Rimbaud, a intraduzível confissão “C’est faux de dire: Je pense: on devrait dire on me pense” (1871: 249). Intraduzível – mas, mesmo assim, tento: “É falso dizer: eu penso. Dever-se-ia dizer: algo me pensa, algo pensa em mim, através de mim, isso pensa-me”?
Do mesmo modo, relembro o pessoano “Na floresta do alheamento” (Pessoa/Soares 1998: 452-458), tão presente em “o melhor seria eu fazer como se [...] tivéssemos morrido há muito e lembrar-me de tudo [...] como de um vago sonho sonhado por outras duas pessoas”. E contudo, “Na floresta do alheamento” constrói-se sobre o pathos do diferimento, da inconsistência, da incapacidade, num imaginário decadentista aliás já datado; enquanto Manuel António Pina, se também diz a dor, di-la sob o jogo retórico da ironia, da ficção assumida – “o melhor seria eu fazer como se” –, da inconsistência da verdade resgatada pela consistência possível, afinal, do texto. Por isso, se tudo é dúvida – “de que lado estou, ou estava, ou estavas tu, ou estava tudo? Terão sido outras duas pessoas?” –, pelo menos a opacidade da escrita da dúvida permanece. Opacidade: “imaginou”. Opacidade: “já de este lado, outra tarde (oh, que terríveis quatro horas de essa tarde!)”. Sic: “de este”, “de essa”; noutros poemas, “de isto”. Como escreve Rosa Maria Martelo: “O uso que [Manuel António Pina] fez das palavras isto e isso, recusando-se a ligá-las gramaticalmente à preposição de, especialmente nos primeiros livros, traduz uma maneira de pensar a linguagem e de equacionar um hiato entre as palavras e o que elas deveriam designar ou tornar presente: o que Pina certamente chamaria vida.” (2012). Hiato – um vazio, uma impossibilidade, uma aporia; mas aporia que se dá a ver, que resiste na leitura: coisa densa.
4. Quem diz a morte como poema?
Quem diz? Quem morre? Como pode dizer aquele que quer morrer, aquele que já morreu e ainda diz, ou que ainda diz e já morreu? Mas acaso morreu, ele – quem? –, ou outro em seu lugar? “Um morto sonha a minha vida, / vive na minha casa, come a minha comida” (1984: 110). Ou então:
Que coisa morreu
na minha infância
e está lá a ser eu?
A lâmpada do quarto? A criança?
Em quem tudo isto
a si próprio se sente?
Também aquele que escreve
é escrito para sempre. (115)
Onde começa este engodo do real, este diferimento das coisas, este não ser nunca si próprio? É uma avaria do mundo, que as palavras denunciam, ou uma avaria da linguagem, que impossibilita qualquer narrativa certa do mundo? Mas acaso existe diferença entre essas duas hipóteses? Ou não é o mundo uma coisa feita de palavras (coisa feita: poiema)? Volto a citar Manuel António Pina, agora em Atropelamento e Fuga: “o mundo, que via pela primeira vez, / via-o através de uns olhos que não me pertenciam, / que não pertenciam, porque eu próprio era / um acontecimento incompreensível acontecendo, / algo que me acontecia não sabia a quem” (2001: 286). Nenhum sujeito simples pode subsistir aqui, tudo nele é acidente, descentramento, despertença; nenhum agente da acção, mas a dispersão de si em “acontecimento incompreensível acontecendo”, ou, mais radicalmente (e seria difícil ir mais longe): “algo que me acontecia não sabia a quem”, acção sem agente, verbos sem sujeito, pronomes sem nome.
Ressalvo, contudo: “Também aquele que escreve / é escrito para sempre”. Acidente, ilusão, pessoa trocada no mundo ou tropo no poema, não importa: algo se escreve, algo fica escrito. É um pequeno saldo, mas importa ressalvar essa (frágil, resistente) permanência da língua, na língua.
Não se pode saber quem diz, quem morre, e se é aquele que diz aquele que morre – mas sabe-se que: “imaginou”, diz, morre.
On me meurt.
Ou ainda: morre a morte que diz, a morte dita, escrita, feita de palavras, morte-poema.
A morte escreve-se. Por exemplo, assim: “Entre a minha vida e a minha morte mete-se subitamente / A Atlética Funerária, Armadores, Casa Fundada em 1888.” Morte escrita, e nesse instante vivida (por quem? por “isto”; por ninguém). Morte composta num tempo apenas possível no poema. A morte cria-se, aprende-se, define-se, rouba-se e dá- -se na rede dos textos; sobre o escritor, Manuel António Pina diz: “Nem a sua morte lhe pertence, roubou-a / a outro e outro lha roubará” (2003: 339). A morte transforma-se em projecto, programa, narrativa de iniciação, purificação, “via regeneradora capaz de conduzir o ser e a linguagem ao princípio dos tempos”, na leitura de Inês Fonseca Santos (2004: 93), encontro de si com um silêncio próprio, irrepetível (106). De cada vez, a morte é aquilo que cada poema investir nela.
Em rigor, não se trata de conferir à linguagem a capacidade de revelar uma qualquer essência da morte. Desafiando a tese de Heidegger, para quem apenas o ser humano, detentor da linguagem, do logos (e não o animal irracional), tem acesso à morte “como tal”, Jacques Derrida questiona: “Quem nos poderá assegurar que o nome, o poder de nomear a morte [...], não participa tanto na dissimulação do «como tal» da morte quanto na sua revelação, e que a linguagem não é precisamente a origem da não-verdade da morte?” (1996: 132-133; trad. minha). Sacrificando a riqueza do pensamento de Derrida, reterei destas linhas apenas uma dúvida preciosa: talvez a linguagem humana não (só) possibilite o acesso à essência da morte, talvez a linguagem também torne a morte inalcançável, inexperienciável, e precisamente por permitir escrever sobre ela, torná-la texto e conceito. Talvez apenas o ser humano, detentor da linguagem, não possa morrer.
Não pode morrer a morte, mas pode inventar mortes virtuais. E até, paradoxalmente, considerar que essas mortes inventadas, fingidas, literárias, são mais reais do que a morte real. Sobre as emoções, Manuel António Pina diz, numa entrevista concedida a Luís Miguel Queirós: “As emoções mais fortes e mais complexas que experimentei foram colhidas em livros e em filmes, ou ouvindo música, e a sua memória é, em mim, permanentemente atravessada pela memória de outros livros e outros filmes, ao mesmo tempo que se confunde com a memória da minha existência por assim dizer «real»” (2011), e logo depois acrescenta esta intuição importante: mesmo essa existência “real” é “frequentemente contaminada (a palavra «irrigada», que usas, é talvez mais apropriada) por memórias literárias: cada uma a seu modo, todas as despedidas são Heitor despedindo-se da mulher e do filho, todos os regressos o de Ulisses.” (ibidem). Assim, todas as mortes são também a de Sócrates no Fédon, a de Cristo nos Evangelhos.
Regresso, para concluir, a Farewell Happy Fields. A esse tempo entre os tempos, futuro presente ou presente passado, em que o sujeito da enunciação é também o sujeito da morte, e contudo diz, e contudo morre. Perguntei várias vezes quem ele é, e não sei a resposta. Nem quantos é. Nem quase nada. Mas sei isto: vivo, morto, ele dirige a sua palavra (o seu testemunho) àquela que, morta também, o acompanha. Uma reza de Lóri, personagem de Clarice Lispector, decerto a um deus desconhecido, termina assim: “faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a minha, amém” (Lispector 1969: 48). Pouco importa já qual sujeito, quantos, está, estão, vivo(s), morto(s). Importa, muito, que haja a mão amada, alguém para responder a esta pergunta:
Reparaste como o Outono este ano veio por outro lado,
como se fosse pelo lado de dentro?
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1999 – Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança; ed. ut.: ibidem: 227-276.
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2011 – “«A auto-ironia é uma coisa tristíssima, é afastar-me de mim, deixar-me desamparado»”, entrevista concedida a Luís Miguel Queirós, in Público; ed. ut.: ed. aumentada em Lyra, http://www.lyracompoetics.org/pt/entrevistas/?entid=2 (acesso em Julho de 2014).
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SANTOS, Inês Fonseca
2004 – A Poesia de Manuel António Pina. O encontro do escritor com o seu silêncio, Lisboa, Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Muito obrigado a Inês Fonseca Santos, Joana Matos Frias, e Rosa Maria Martelo, pelo diálogo em torno deste ensaio. |