__________________________________________O receio da morte é a fonte da arte
__________________________________________Ruy Belo
Dezassete anos depois de ter nascido, decidiu esta revista dedicar um número às relações entre a poesia e a morte. Um tema como este parece quase evidente, na medida em que os poetas sempre escreveram sobre a morte, para a morte, contra a morte ou, em todo o caso, com uma aguda consciência dela. E não só os poetas, já que tudo isso a que damos o nome de arte tem sido um modo de os seres humanos se confrontarem com a morte – ora movidos pela ilusão de a vencerem pelas obras que deixam, ora simplesmente insatisfeitos por uma vida que de certa maneira a arte viria substituir por outra coisa menos efémera, menos degradável, menos imperfeita (outra ilusão).
Falar da morte é, em última análise, uma tarefa impossível. Quem quer falar da morte acaba sempre por falar da vida, a partir do tempo que lhe coube como interregno roubado à morte. Pedimos a alguns poetas e ensaístas que reflectissem sobre a morte, em contributos que terão resultado escassos em função do que tínhamos concebido para este número da Relâmpago. Evasivas, adiamentos ou mesmo cordiais recusas espelham, afinal, a profunda incomodidade que o tema continua a provocar em muita gente. Sendo uma realidade universal e igualitária, e tendo desde sempre atraído muitos homens e mulheres que a procuraram antecipar como uma libertação – é longa a lista de poetas suicidas –, a morte tornou-se difícil de aceitar por uma sociedade em que ela parece esconder-se cada vez mais, como se a sua irrupção representasse um escândalo ou o último tabu capaz de perturbar a imagem de uma felicidade lisa e sem arestas para a qual educamos as nossas crianças.
Para lá das habituais secções de poesia inédita, tradução e recensões críticas, esta revista insistiu, ainda assim, em falar um pouco da morte – mesmo que nada haja para dizer sobre ela. Um padre francês do século XVIII, o abade Dinouart, publicou em 1771 a sua Arte de Calar (L’art de se taire, principalement en matière de religion). Trata-se de um livrinho muito lúcido e consolador, onde se diz que “só não nos devemos calar quando temos algo para dizer mais valioso do que o silêncio”. Sobre a morte, de facto, só o silêncio falaria. Ou esse outro nome que lhe damos e a que chamamos poesia.
FERNANDO PINTO DO AMARAL
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