No cinema, parece-me, a poesia encontra-se sobretudo nos interstícios, nos quais se aloja por acidente, nuns casos, ou mesmo à última da hora, noutros, por impulso ou descaso do realizador: é então impertinência, ou até excrescência. Com algumas excepções (Tarkovsky, Sokurov, Resnais, etc.), o cinema que se assume ou se cultiva como iminentemente poético interessa-me menos que esses discretos e efémeros passageiros que embarcam clandestinamente no cinema narrativo e clássico. Muitas vezes acontece-me ser incapaz de resumir o enredo de um filme que vi mas ter não obstante a doer, nalgum sítio de mim, um rosto, um movimento, um enquadramento, um plano, como se fosse uma ferida ou uma queimadura.
Por outro lado, a memória de certos filmes, a radiação dei-xada por certas cenas ou planos, verte sobre eles, retrospectivamente, uma poesia não detectada aquando do seu visionamento. Há memórias de filmes que me assombram como um poema que quer ser escrito, e quanto mais longínqua e difusa essa reminiscência, mais poética se me afigura – um pouco como a infância; vá lá, como a própria existência. O cinema possui uma capacidade única de ressuscitar os mortos. Quase arriscaria dizer que esse lado espectral é para mim mais sedutor que o próprio visionamento: quando revejo um filme exorcizo esse fantasma, afugento-o. De modo que quando vejo um filme pela primeira vez procuro já a silhueta do seu fantasma: o filme que há-de ficar depois de esquecido o filme. Como se todo o filme fosse já um raccord.