Vós, pombos, que fostes correios de amanhãs cantantes,
e como nós outrora vivestes na intimidade dos deuses,
e nos bosques do Epiro até fundastes,
vindos de Tebas, um oráculo de renome,
antes de Alfred fazer da vossa classe o braço alado
do apocalipse,
sabei-vos desde já novamente requisitados
para delegados de um premente inadiável correctivo universal.
Deixai pois essa arte de fantasmas esse assunto de mortos
e batei vossas asas do lado de cá:
batei-as com fúria
e cuspi o raminho de oliveira e o mais que vos deram ao engano.
Chamai vossos irmãos das terras todas onde esvoaçam
e empoleirai-vos sobre pontes, barragens,
semáforos, viadutos,
cumes de prédios, mausoléus, cocurutos,
até que estes soçobrem sob o vosso peso.
Tomai de assalto os automóveis parados no vermelho
e vazai os olhos aos condutores
que se insultam
e às vezes se matam,
e não poupeis as crianças – ah!
sobretudo acabai com as crianças,
para que um dia não conduzam contra a vida e contra o silêncio, sim,
para que um dia não acordem com azar
ou com azia
e se tornem correctores ou cortadores de cabeças
de rubras silhuetas recortadas nas ruínas de Palmira.
Voai rumo aos velhos que vos deitam de comer nos jardins,
e lá chegados comei-os antes a eles,
para que se finem ao menos sob o sol
e não a sós num último andar cheio de ratos,
somente inumados porque cheirados pelos vizinhos
no regresso do Algarve.
Voai com essa altura essa altivez que só os bombardeiros ostentam
de olharem cidadezinhas lá em baixo lá muito em baixo,
brilhozinhos efémeros entre madeixas de nuvens,
e uni forças, se tiver de ser, com as gaivotas,
e que estas rebentem com esses ecopontos de porcaria escrupulosamente
separada,
a boa consciência na saca verde,
a má numa saca qualquer.
Vós, pombos, que entre arrulhos maculais as estátuas
ao que se diz com esterco solvente corrosivo
voai lá com grande estrondo e grande estrago,
porque nós já não podemos,
nós não queremos sequer acolher os que chegam meios mortos
ou mesmo inteiramente irreversivelmente mortos às nossas costas,
com anéis nos dedos, alianças e tudo,
porque nos podem roubar o emprego, ou pior ainda,
dar cabo dos nossos costumes, dos nossos curtumes.
Voai lá, pombos, e lá onde fordes lembrai vós antigos ecos
de praças que eram praças,
casas que eram casas
e ruas que eram ruas, enfim (e era isto que vos queria dizer):
coisas que eram coisas e não anúncios
de coisas,
estátuas que são ainda assim menos estátuas
que muita gente.