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Cinema, princípio organizador da natureza

Rosa Oliveira

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Este poema é uma recordação descritiva. Não passamos nunca disto quando evocamos. O sabor da madalena é intransmissível. Associo os meus primeiros passos de espectadora de cinema ao verão, às duas salas de cinema em Espinho nos anos 60 e 70.

Associo essa aprendizagem ao fascínio por uma sala semi-deserta, à escolha muito pensada de cada filme que ia ver à sessão das 14 horas (tinha pouca informação, tinha pouco dinheiro e nenhuma vontade de sestas inúteis), ir ao cinema sozinha, sair da sala e reter durante o máximo tempo imagens e sons do filme em frente ao mar tão pouco amistoso de Espinho. Amarcord, diria Fellini.

Pensei que seria inevitável escrever sobre Bergman. Mas não sei escrever sobre a escrita de Bergman. Seria perigoso e inútil. Como obra completa nada mais há a dizer que não seja a paráfrase frouxa e melancólica. Revi As melhores intenções de Bille August, argumento de Bergman. Retrata o namoro e primeiros tempos de casamento dos pais de Bergman. É o contraponto de Fanny e Alexandre (filme autobiográfico e tchekhoviano). Mas enquanto Fanny e Alexandre se resolve em redenção mágica como a lanterna que salvou o jovem Ingmar da opressão paterna e do silêncio materno, o filme de Bille August expõe num espelho cruel a relação amaldiçoada e letal em que o jovem casal mergulhou desde o início e que arrastaria como um fardo durante cinquenta anos, até à morte. Maldição e catástrofe que se transmitiria aos três filhos, num vírus multiforme. É o preâmbulo da vida de cinco pessoas infelizes, embora todos eles tenham tido as melhores intenções. Intenções que não passavam de máscaras, como Ingmar diria em toda a sua obra e na autobiografia. Usando parte dos impressionantes diálogos do filme, escrevi:

 

as melhores intenções

dormia e sonhava que dormia
o que é a vocação?
uma voz dentro de nós?
um respirar morno na face?

era um amor predestinado
à catástrofe
diziam as mães
bem sabemos que é impossível
ser mãe e optimista

era uma família que lia selma largerlöf ao serão
ele recriminava este pecado original
uma autora que fala do amor
como o único milagre terreno.
acresce que a família acreditava
que selma adicionou
a possibilidade de amor
para tornar os seus contos
um pouco mais atraentes.
era um mundo desorbitado
o mundo largerlöf
para o pastor bergman
na sua temível ambição luterana

eram inimigos
ela olhava o mundo com atenção
e concluíra:
vivi muito e nunca captei vislumbre
de milagre algum terreno ou celestial
ele regia-se por estrito imperativo categórico
os seus actos como máximas universais
eis frente a frente
uma niilista e
um arrogante espiritual
está bem de ver

sabemos que morrerei em breve
sabemos, embora não o digamos
estamos perturbados
e à beira das lágrimas
mas não paramos a vida
a casa estava ao contrário
o lado norte virado para sul
logo isso a deixou inquieta
tiveram de mudar as escadas
para orientar a casa

começo a reconhecer a minha vida
estava a sonhar agora estou acordado
estou numa casa a cair
num ermo
um estranho grita comigo
como podemos viver depois disto?
devíamos sentar-nos à mesa e
conversar durante cem dias

quando vejo a tua beleza prodigiosa
tenho visões cósmicas
vejo vias lácteas, galáxias
a polca insana dos planetas
tu contradizes o sentido da via láctea
e o vazio impiedoso do universo
dizia-lhe o irmão ébrio de amor
na despedida de uma vida
nunca mais recuperada

em breve o presbitério
seria o palco sempre aberto
e eles ali modelos que não eram
só em silêncio podiam aguentar
o papel de quem está vivo sob chicote

muitas alegorias, desilusões
doses de erotismo metafísico
colados à gelatina da película
perfeitas sequências de pecado indulgência segredos remorsos
habituados a beijar a mão que os vergastou
nunca tinham ouvido falar em liberdade
a longa cadeia de castigos
era um sistema sofisticado
sob o olhar exigente dos paroquianos

tudo à volta parecia vidro
foram precisos mais de cinquenta anos
para se libertarem da jaula da capela
de um lugarejo esquecido
na agreste norrland

provavelmente kant teria filmado assim

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