Paisagem na Neblina (Topio Stin Omichli) conta a história de dois irmãos, Voula, de onze anos, e Alexandros, de cinco, que decidem sair de casa em Atenas e partem à procura do pai desconhecido que supostamente terá emigrado para a Alemanha, mas que não sabem onde se encontra ou sequer se está vivo. Durante a viagem, uma viagem ao mesmo tempo inteiramente real e inteiramente construída, perpétuo traço do pisar de sucessivas fronteiras, estreitamente ligada à iniciação da vida e do fluxo do tempo, descobrem o bem e o mal, a verdade e a mentira, o amor e a morte, ao mesmo tempo que inventam um universo perante um mundo hostil, que os leva a abandonar a infância, ensaiando os primeiros passos em direcção à adolescência, ao sonho da profunda humanidade que constitui a única possibilidade das nossas vidas, ainda que pelo testemunho de que todo o destino nos escapa e que toda a direcção, histórica e comum, é provavelmente ausência, que sucessivamente desaparece.
Realização: Theo Angelopoulos; Argumento: Thanassis Valtinos e Tonino Guerra; Música: Eleni Karaindrou; Interpretação: Michalis Zeke e Tania Palaiologou; Ano: 1988, França/Itália/Grécia.
De um modo particular, de que se retira a poesia inspirada num compromisso ético ligado ao mais significativo lugar na arte, que, enquanto arte, se guia pela necessidade de fazer indagações tão vitais quanto as que exprimem a nossa profunda, cada vez maior, sensação de perda, aquilo que definimos como o elo que junta um período de tempo, nas suas fragilidades, dúvidas e ideologias, ao espírito do sofrimento com o qual se torna maior o nosso isolamento, constitui um dos pontos em que são alicerçadas as formas morais de uma época, donde a consciência da liberdade interior que desperta na obra artística implica, por vezes nostalgicamente, a responsabilidade envolvida na empatia que sustém a vida realmente vivida e a dádiva da esperança e que, na sua humanidade, remete que vejamos o seu fundamento nas palavras que se interpõem entre os ferimentos do choque da beleza e da inevitável solidão.
Este fluxo do tempo implica pois uma dicotomia com aquilo a que aspiramos e que, inexoravelmente, forja o laço em que protecção e o amor se erguem sobre os que caminham desvalidos, e por isso, neste sentido, quando Voula e Alexandros emergem solitariamente na noite das ruas de Atenas e se dirigem à estação de comboios para apanhar o expresso que os levará à Alemanha a fim de conhecerem o pai, os verdadeiros acontecimentos, que nos restringem diante da câmara, repercutem a ternura transmitida nos pensamentos inconfessos dos dois irmãos, inseparável daquilo que está enraizado em nós e de que precisamos para suportar os mal entendidos num mundo vazio, pragmático, negativo, sobre o qual, como em todos os abandonos, antagonismos e infâncias obstruídas, o afecto, assim como o dever de protecção, constitui o contraponto que volta sempre à mesma origem, à mesma casa, ao mesmo regresso que cuida das fraquezas dos homens, mulheres e crianças contemporâneas sem conforto e consolo, avançando por cenários de ruína material e moral rumo a um lugar de contemplação inicialmente perdido, num conjunto de imagens poéticas disseminadas à luz de um domínio mais pungente que o da lei.
Na medida em que o ritmo do filme é comunicado pela recolha dos vestígios da própria jornada através dos logros, conflitos, crescimento e mudança que são, por sinal, também os despojos que jorram dos dilemas europeus, a marca pessoal, a arte de Angelopoulos, desvenda um recorte na devoção do coração humano, e nesses momentos a passagem do tempo linear e progressivo interrompe-se ou, em abono da verdade, é transmitida pela chegada de Alexandros e Voula a uma fronteira inexistente ou meramente alegórica, visto que aquilo que vemos nos fotogramas que acompanham os dois irmãos a correr para a árvore que lentamente abraçam enquanto a neblina se depura sob a dilacerante música de Eleni Karaindrou não se esgota na tela, antes passa para além do quadro, como se fosse necessária a candura para o florescimento de uma ordem sensível, um breve sonho infantil que lhes mitiga o medo que, para nós, colmata as decepções das crianças e assim tudo aquilo que fora visualizado através da idealização da figura paterna.
O que se passa no filme de Theo Angelopoulos é que, portanto, a viagem dos dois irmãos na Grécia emerge do efeito de uma bondade profundamente humana que está à tona da realidade hostil, insidiosa, e, desse ponto de vista, inscreve-se, por via da melancólica beleza, na nossa experiência pessoal, colectiva e histórica, adquirida nos fragmentos da nossa existência, na intimidade entre a vida e a recordação que cada um de nós cultiva, que é ao fim e ao cabo o referente intertextual daquele mesmo fluxo do tempo, onde somos um pouco mais livres, mesmo tendo a certeza que tão poucos de nós encontram o caminho em que compadecidamente se colhe o sustento da vida, a gentileza que não acaba e que se coloca à nossa guarda como num conto de fadas, zelando contra o insucesso e pela visão desinteressada por que nos deslocamos constantemente em relação aos outros, tutelados, como na poesia, por uma fremente condescendência.
Neste contexto Angelopoulos encontrou sempre relações e figuras que usou e repetiu frequentemente ao longo das suas obras, tais como os encadeamentos que ligam a errância dos passos que não têm direcção certa, que concernem a categorias de personagens andando vagarosamente por sítios aonde não se chega e que não se cumprem, que ora se suspendem nas linhas de fronteira, ora aguardam serem abarcados por outra sorte [1], e as questões que, por exemplo, nos dias de hoje, arquetipicamente, respeitam às epopeias desenroladas dentro de circuitos inacabados, crianças e órfãos que percorrem sem tecto as linhas férreas dos Balcãs e da Europa, as ilhas de Lampedusa e do Egeu, os imigrantes, os abandonados, os exilados no seu próprio país, os pais e mães que não têm rosto, os refugiados europeus confrontados na dolorosa realidade da encruzilhada dos caminhos pessoais, religiosos e políticos, atravessando fronteiras mas permanecendo residualmente no mesmo sítio [2], buscando a compaixão que lhes acena de países distantes mas enredados na imaginação modelada sob o afecto dos poemas, pelo simples motivo de que as barreiras são metas em que as nossas vidas podem estar a sofrer em nome de um bem derradeiro que talvez constitua um definitivo padrão estético, que só pode ser visto quando se é levado, face à contradição do presente como ausência, pela solidão e pelo tempo.
Esta intuição é, em boa verdade, idêntica à atenção que na poesia expurga do conhecimento os elementos que atribuem um valor autónomo, sem distinções, a qualquer acto comprovado pelo utilitarismo que nada tem a ver com a interrogação específica, com o enigma lento mas seguro do significado mais absoluto dos laços com os antecessores e os vindouros, com a perda e as utopias, a vida e a morte que não podem ser decifradas, conduzindo à ética do afecto e da dignidade que realmente importa e que nos momentos em que somos destituídos de identidade parece resistir, mesmo instavelmente, nos intervalos do silêncio que medeia o pensamento contemplativo que nos aproxima da memória e da dor daqueles que na realidade são excluídos, habitantes do seu exílio interior, seja pelo signo de que tudo se desvanece, seja pela impossibilidade de futuro.
Aliás são sobretudo as imagens de um murmúrio redentor por onde não sentimos o movimento mas em que tudo acontece silenciosamente, é a sequência impregnada da atmosfera de uma catástrofe guiada numa desolação imóvel, que permitem tornar tão palpável quanto possível, para nós espectadores e leitores, o sentido que se extrai dos personagens e périplos que, página a página, imagem por imagem, lutam contra a memória e a perda da identidade, mostrando-nos que é precisamente nesta duplicidade entre as figuras dos desenraizados pairando numa condição de privação da liberdade, num abismo político-geográfico, e uma certa metáfora ocidental, particularmente balcânica, sobreimpressa nas estradas geladas e monótonas, nos rios que são muitas das vezes o espaço de divisões e separações em que tudo o mais colapsa, que reside o próprio sentido da temporalidade e do horizonte do tempo que, como o vínculo que une os dois extremos do que é mais fraterno e mais aniquilador, fornecem à perspectiva histórica a questão da travessia de fronteiras físicas e territórios sujeitos à permanente viagem e exílio, ao destino individual e comunitário, à herança europeia que se equivale à construção de uma ruína poética.
Daí que esta cadeia de acontecimentos, esta linguagem da catástrofe política, pessoal e colectiva, tanto na História como num passado que não termina e de que sofremos as escolhas, seja a prova que deixa clara a nossa pertença a uma cultura que reverbera a noção de que há irremissivelmente uma esperança a fim de direccionar as ruínas que podem surgir do nada e que o resultado há-de interligar-se necessariamente através de uma sombra desdobrada por outra, através da repetição de um fim que não tem obrigatoriamente um início, e que portanto, na abordagem que o autor concebe, tudo se liga a um princípio invisível cuja fraqueza é porém o sinal de uma imanência anterior em que o problema da solidão humana, a consciência da usurpação e do sacrifício que caracterizam as democracias modernas geram a atmosfera do que parece impenetrável e por onde aquilo que é funesto e social e psicologicamente vulnerável indissoluvelmente se preserva na piedade e no amor, mesmo que não passe de uma óbvia quimera.
Sendo assim a arte, mormente no cinema e na poesia, representa de facto, porque reitera a convicção de que nos sentimos parte de uma unidade profunda e verdadeira, exactamente o contrário daquilo que é a leitura segundo a qual a única maneira de adoptar uma ideia relativamente ao mundo e fazer uma escolha reside na promessa de resolver os conflitos de acordo com o que é estabelecido num quadro utilitário de axiomas calculados, em vez de ser feito primeiro por nós, no esteio do tempo efémero que passa connosco, no passado a que se está preso desde o nascimento, e que face à preocupação com os outros, à humildade perante o que herdamos, que partilhamos com os que amamos, permite nos momentos de maior angústia que a reconciliação seja possível, substituindo a lógica pela intuição, expressando, em último caso, o verdadeiro conhecimento, de que dependemos de acordo com a nossa conduta moral, do prenúncio da esperança que no seu nível mais elevado sana a devastação, acendendo o pavio, a labareda que aquece o rosto inquieto de Voula e Alexandros nos falhanços do mundo, nos que estão abandonados num universo destroçado.
NOTAS
1. To meteoro vima tou pelargou (O Passo Suspenso da Cegonha), com argumento de Tonino Guerra e Petros Markaris, música de Eleni Karaindrou, e interpretação de Marcello Mastroianni e Jeanne Moreau, realizado em 1991. Sinopse: Alexandros, um jornalista, viaja até à zona de fronteira da Grécia com a Albânia para uma cidade que é conhecida como a “sala de espera” pelos seus habitantes, a maioria refugiados turcos, curdos, albaneses, romenos e polacos que esperam a vez de começar uma nova vida noutro lugar. Aí julga reconhecer um homem que acredita ser um político grego desaparecido misteriosamente há alguns anos depois de um discurso no parlamento em que afirmava que era preciso criarmos um estado de silêncio que nos permitisse ouvir a música da chuva.
2. Mia aioniotita kai mia mera (A Eternidade e um Dia), com argumento de Tonino Guerra e Petros Markaris, música de Eleni Karaindrou, e interpretação de Bruno Ganz, realizado em 1998. Sinopse: Alexandre, um poeta, velho e doente, às vésperas da morte, prepara-se para deixar a casa onde viveu, em Tessalónica, quando encontra uma carta da mulher, Anna, sobre um dia de verão de há muitos anos. Apercebe-se de quanto ela o amava e começa uma viagem em que o passado, o presente, as memórias e as ausências se misturam entre diferentes sensações e momentos vividos, entre o compreensível e o misterioso, e, enquanto reavalia a sua vida, encontra um menino albanês que vive na rua sozinho e que ajuda a voltar à Albânia, ao mesmo tempo que lhe conta a história do poeta grego do séc. XIX Dionysios Solomos que vivia exilado em Itália e que de regresso à Grécia pedia palavras às pessoas para escrever poemas na sua língua perdida.
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