Encontrar os nomes de Herberto Helder e de Jean-Luc Godard sob um mesmo título pode causar, a um primeiro momento, uma estranha reacção: o que têm em comum um poeta português e um cineasta franco-suíço? São duas obras, sem espaço para dúvidas, muito diferentes. Podemos, contudo, avançar uma resposta possível: Helder e Godard exploram, de forma criativa, uma reflexão e uma prática artística que inquirem as outras artes, interessando-se, particularmente, pela imagem (enquanto ideia e enquanto prática) e pelas relações desta com a linguagem. Diremos, sobretudo, que existe, em Helder, uma aproximação ao filme e ao cinema e, em Godard, uma aproximação ao poema e à poesia, que exploraremos aqui através de alguns motivos de Cobra (pensando-o a partir da sua primeira edição de 1977) – especialmente num poema –, e do filme Je vous salue, Marie (1985).
Há, no entanto, como advertíamos, diferenças constitutivas: dois autores, duas obras, duas artes (de certa forma), dois suportes técnicos. Mais ainda, se toda a obra de Helder é escrita, rigorosamente texto, e se, por outro lado, a obra godardiana se estende por domínios diferentes (filmes, escrita, exposição), em ambos parece existir uma inquietação matriz. Helder é um reescritor, as edições aparecem permanentemente reescritas, às vezes aumentadas outras reduzidas, há obras excluídas, há uma circulação de textos e de livros dentro das obras da obra. Godard, por seu lado, faz a sua obra proliferar entre longas e curtas-metragens de ficção, filmes-ensaio (que mantêm uma relação às vezes intrínseca, outras afastada, com as primeiras), críticas cinematográficas, participações escritas variadas (entrevistas, textos pontuais em eventos ou revistas cinematográficas, um poema no primeiro número da Trafic), publicação dos argumentos dos seus filmes, publicação dos filmes em livro, mais propriamente, em poema (Histoire(s) du cinéma na colecção «Blanche» da Gallimard, série «Phrases» na P.O.L), CD com a banda-som do filme (Nouvelle Vague, Histoire(s) du cinéma), exposição «Voyage(s) en utopie» no Centre Pompidou.
A obra de Herberto Helder é constituída por livros muito diferentes, mas poderíamos dizer que (de forma mais ou menos intensa, mais ou menos explícita) há uma ideia de poesia que revela um entendimento da relação intrínseca (ou mesmo da identificação) entre poema e imagem e do poema como desfile evanescente de imagens, sendo que a imagem, em Helder, não é exclusiva do visível: dá a ver, mas não é conceptualizável. Esta ideia de imagem encontra-se, então, muitas vezes, em relação com a imagem cinematográfica, isto é, com uma imagem-tempo (seguindo a definição de Gilles Deleuze), com a montagem das imagens, com o fluxo das imagens que desfila em frente aos nossos olhos, como se Helder aspirasse a essa dupla possibilidade do filme de fluidez (desfile) e de ruptura (montagem) [2].
Detenhamo-nos no caso de Cobra. Editado em 1977 pela editora & etc., algumas particularidades se evidenciam neste livro: do facto de, ao longo dos anos, ser um livro que se vai dividindo em outros «livros» até à exclusão de uma das suas partes, precisamente aquela que é intitulada «Cobra», ao facto de que de uma tiragem de 1200 exemplares, 200 terem sido distribuídos não comercialmente, entre os quais muitos foram reescritos a caneta – versos eliminados, variantes possíveis – pelo autor. Helder criou com Cobra o livro impossível: reescrito manual e diferentemente a cada exemplar [3].
Na primeira edição de Cobra, este é constituído por cinco secções: «Memória, montagem», «Exemplo», «Cobra», «Cólofon» e «E outros exemplos». Em Ofício cantante (2009), Cobra é suprimido da «poesia completa», contudo, só o é na aparência. Se ele é ainda retomado em Poesia toda, em 1981 (já sem «Memória, montagem»), a partir da edição de 1990 da mesma obra, Cobra transforma-se em três «livros»: Etc., Cobra e Exemplos; e em Ofício cantante só desaparece mesmo a sequência homónima do livro. Na verdade, das cinco partes da primeira edição de Cobra: «Memória, montagem» integra Photomaton & vox, o poema «Exemplo» corresponde ao poema «1.» de Exemplos, o poema «Cólofon» ganha independência e torna-se Etc. (na edição de 1990 de Poesia toda) e a última secção do livro, «E Outros exemplos», torna-se a sequência Exemplos, da qual o poema «5» é suprimido e os restantes quatro primeiros mudam de numeração (o «1» passa a «2» e assim sucessivamente), mantendo-se um conjunto de 5 poemas.
O vínculo deste livro com o cinema é eminente, abrindo com o texto em prosa «Memória, montagem», um dos textos mais marcados pelo cinema de Helder, no qual a relação entre poema e filme aparece singular e radicalmente formulada: «Qualquer poema é um filme, e o único elemento que importa é o tempo, e o espaço é a metáfora do tempo» (Helder 1979: 141). Helder pensa o poema como montagem e, logo, como desfile de imagens, aproximando o tempo específico da poesia com um tempo próximo do do cinema. A capacidade de dar a ver das palavras é, então, associada à sucessão de imagens temporalizadas de um filme.
Não vamos, aqui, deter-nos sobre todo o livro, mas antes concentrar a nossa reflexão sobre o poema «Exemplo», mais tarde intitulado «1.». Notemos, assim, que dada a organização de Cobra na sua primeira edição, com «Memória, montagem» como texto de abertura, poderíamos ler «Exemplo» precisamente como um «exemplo» do texto que lhe antecede. E o facto de, posteriormente, estes poemas aparecerem reunidos sob o título Exemplos e terem números como título reforçaria esta hipótese, podendo ler-se «exemplo 1», «exemplo 2», etc [4].
O poema «1.» apresenta no primeiro verso «uma teoria» – «A teoria era esta: arrasar tudo» (Helder 1977d: 305) –, no entanto, dá-se, logo de seguida, a interrupção dessa mesma «teoria» através da utilização da adversativa «mas» (mesmo antes, a sua não operatividade estava desde logo revelada pelo imperfeito «era»): o que vem interromper a «teoria» é, então, uma «máquina de filmar». Os dois primeiros versos do «primeiro exemplo» colocam-nos face a esta ideia de que o cinema, a máquina de filmar, vem interromper a formulação de uma teoria, de um discurso assertivo e totalizante. Retomemos a sequência:
A teoria era esta: arrasar tudo – mas alguém pegou
na máquina de filmar e pôs em gravitação uma cabeça recolhendo-a
de um lado e descrevendo-a de outro lado num sulco
vibrante «parecia um meteoro»
como se fosse muito simples e então a cabeça desaparecia «a lua»
a ferver a grande velocidade pelo céu dentro
«um buraco»
via-se apenas a intensidade «estávamos com medo pois aquilo
assemelhava-se a uma revelação» e foi quando ele apanhou a cabeça
outra vez
e era agora uma cabeça furiosa
«cheia de peso» dizia-se «a luz agarra qualquer coisa»
[…][.] (Helder 1977d: 305)
A teoria era «arrasar tudo» e a máquina de filmar vem não só interromper a formulação de um discurso quanto interromper a destruição. Parece-nos, assim, que a máquina de filmar inscreve um duplo movimento, tanto o de impedir o discurso totalizador quanto o da destruição absoluta do discurso. Em jeito de parêntesis, não esqueçamos que Cobra (1977) vem após Antropofagias (1973), no qual, apesar de o problema se poder também colocar noutros termos, Helder falava, em «(movimentação errática)», em «levar a linguagem à carnificina» (Helder 1979: 126) [5]. Também neste sentido, notemos que o poema «1.» é o único na obra onde se dá a mesma utilização das aspas que em Antropofagias. Com efeito, a máquina de filmar tem – consequentemente, diríamos – uma particularidade, porque, filmando uma «cabeça em gravitação», ela «recolhe» de um lado e «descreve» de outro lado (o que pode equivaler às duas acções fundadoras do cinema: gravar e projectar). A questão não se jogará, simplesmente, na imagem que vem inscrever uma fenda no discurso totalizador, a câmara de filmar, no seu duplo jogo de recolher/descrever (e, não esqueçamos: descrever um movimento é o acto mesmo de o percorrer), substitui-se, em certa medida, à linguagem (não será, por isso, estranho que o poema «2», de Exemplos, comece por «destruir os textos»).
A «descrição», no poema «1.», é (pelo menos) dupla, porque o que lemos não é, propriamente, a descrição do que a câmara vê, mas sobretudo a simulação do discurso desse «alguém» que pegou nela ou que viu. O carácter heurístico da câmara reproduz-se nas mãos daquele que a manipula, pois «via-se apenas a intensidade», «assemelhava-se a uma revelação», «havia ali um senso arcaico da paixão» (Helder 1977d: 305). Como frequentemente acontece na poesia de Helder, o que se vê é um substantivo de ordem abstracta («intensidade»), sem concretude, que é, no poema, espacializado, é para ele que olhamos. Interessa, assim, sublinhar que o que se vê, em Helder, são adjetivos, qualidades, e o processo pelo qual passam é o da subtracção da sua referencialidade textual. Mesmo os substantivos parecem operar como adjetivos ou advérbios, enfatizando a qualidade e o modo, quase sempre em relação a um acto ou a um processo (e excluindo o que seria da ordem do contorno ou do quadro). Tudo o que se vê, tudo o que pode ser «descritível», não é do domínio do concreto (não pode propriamente ser conceptualizável numa imagem «definida»), mas do movimento da revelação, da força, que no poema, em paralelo com a câmara, evidencia o carácter heurístico da imagem poética, dela definidor para Helder.
Notemos também que a utilização das aspas (exclusiva deste poema em Cobra) instala uma polifonia das vozes, uma espécie de diálogo que nos faz verdadeiramente pensar num filme. Deste modo, se destacarmos as aspas, lemos: «“parecia um meteoro”», «e então a cabeça desaparecia “a lua”/ a ferver a grande velocidade pelo céu dentro/ “um buraco”/ via-se a intensidade “estávamos com medo pois aquilo/ assemelhava-se a uma revelação”», «“cheia de peso” dizia-se “a luz agarra qualquer coisa”/ oh sim: “com toda a violência”», «“que é isto? perguntou-se” – e pusemo-nos todos a pensar bastante/ “havia ali um senso arcaico da paixão”», «“é um movimento uma forma” disse ele/ “é preciso voltar ao princípio”» (Helder 1977d: 305), «“era tão estranho!”», «“uma estrela refractada” para falar do que se viu», «aquela ideia/ de que “não digo beleza” de que uma força/ impelia tudo», «a queda “como oxigénio a arder”», «de um modo que dizíamos: “indomavelmente”», «– na sua firmeza: “inocentes” – isso fazia medo/ e havia em nós “um estilo de ver”», «“porque era preciso destruir tudo” sim “de extremo a extremo”/ para encontrar “o centro”», «de que saltam fortemente “os astros os rostos”/ e não haver “exemplo”» (Helder 1977d: 306). As aspas dão-nos, desde logo, a ideia de um diálogo polifónico (e de ecos ou gritos nesse diálogo); ideia que é sublinhada pelos pronomes pessoais (maioritariamente omissos) «alguém», «nós», «ele», «eu», tal como pelo advérbio «sim» e pelas formas dos verbos «dizer», «perguntar», «falar», «ver», «fazer», «haver», «encontrar». O próprio tom narrativo dado, desde o início, por «alguém pegou na máquina de filmar», faz com que «1.», de Exemplos, nos dê a sensação de que assistimos a um filme (ou à sua rodagem, por sua vez filmada).
O próprio Helder, referindo-se a «E outros exemplos» (cujos quatro primeiros poemas, como referimos, constituirão Exemplos), numa carta a Gastão Cruz de 15/07/1977, confirma, de certa forma, esta intuição:
Tenho-os mais próximos de «Exemplo», embora não pertençam bem à mesma família, senão naquele sentido em que todos estes poemas formam um conjunto natural. A minha ideia, em «E outros exemplos», é, no respeitante à escrita (e não apenas à escrita, afinal), propor poemas um tanto no mesmo comprimento de onda de alguns filmes de Andy Warhol: imagens descuidadas, montagem elementar, materiais brutos – uma aparente nenhuma ciência de poema. […] Fiz tanto quanto possível como se estivesse a ver um filme «underground», concebido e realizado em condições técnicas precárias, depressa, numa atmosfera trepidante. (Isso, o que me interessa). (Helder 2015: 152)
Não nos parece, deste modo, estranho que o motivo que percorre estes poemas seja uma cabeça, várias cabeças. A cabeça, aqui, distancia-se da ideia de racionalidade, de domínio do espírito sobre o corpo (ela é «uma cabeça contra a teoria»), porque esta é uma cabeça autónoma, separada do corpo. Do lado do cinema, Helder menciona Warhol (podemos pensar, por exemplo, no filme Eat, de 1963), mas, recuando, lembramo-nos evidentemente de Georges Méliès, sobretudo dos filmes Un homme de têtes (1898) e L’Homme à la tête en caoutchouc (1901), ou mesmo de Le Voyage dans la lune (1902), onde a lua – «“a lua”» também presente no poema de Helder – aparece como uma grande cabeça (a «cabeça lunar» é já uma rejeição de qualquer ideia de racionalidade). Talvez mais próximo do poema de Helder esteja um filme, um «cinépoème» – como aparece em subtítulo –, de Man Ray, intitulado Emak bakia, de 1926.
Falamos de referências cinematográficas concretas, todavia todo o problema se poderia colocar cinematograficamente através do grande plano, porque todo o grande plano, como lembra Deleuze, é já um rosto, uma cabeça: «Il n’y a pas de gros plan de visage. Le gros plan, c’est le visage» (Deleuze 1983: 141), tendo já antes explicado que o grande plano transforma tudo em rosto, ao que chama, num parêntesis, «un objet visagéifié» (cf. Deleuze 1983: 138) [6]. Esta noção de objeto «visagéifié» não parece ser estranha a Helder e às cabeças medusantes que atravessam Cobra [7].
A «cabeça» filmada, recolhida e descrita, de Helder, parece inscrever-se precisamente na lógica do grande plano: o de uma cabeça que «toma o carácter de autonomia animal», numa expressão de Jean Epstein, livre da métrica do corpo, organismo vivo por si mesmo. Tudo parece devir grande plano – todo o espaço se torna rosto –, porque estão ausentes do plano as coordenadas espácio-temporais. Contudo, em «1.», de Exemplos, se a cabeça for vista como um grande plano, ela devém paisagem, movimento. Retomemos o poema:
«havia ali um senso arcaico da paixão»
talvez uma coisa tão remota e bárbara como: o fausto:
o pavor:
a caça: «é um movimento uma forma» disse ele
«é preciso voltar ao princípio»
e então começámos a usar os olhos com a ferocidade das objectivas
sem truques capturando tudo selvaticamente
e havia por vezes a vertente das espáduas desalojadas
um caudal sumptuoso
cortado «era tão estranho!» pela ligeireza dos dedos abertos
[…][.] (Helder 1977d: 305-306)
Contra a teoria, há, também, «um movimento uma forma», não apenas a máquina de filmar, mas a vertiginosidade da linguagem no poema: contra a teoria, a pontuação, contra a gramática, o ritmo. Sucedem-se assim os dois pontos e a velocidade da enumeração: «fausto», «pavor», «caça». Há, no entanto, um segundo movimento, o de voltar ao «princípio», no qual os olhos se substituem à câmara. Desde o início, trata-se de um acesso directo à realidade, primeiro contra a teoria, interrompida pela máquina de filmar, depois os olhos que «selvaticamente capturam»: a máquina independente do olho humano, que vê para lá do olho – numa espécie de caça ao visível –, num «caudal» (desfile de imagens) «cortado» (operação de montagem). Da velocidade das imagens à montagem, é a alucinação do real, uma espécie de visionarismo, que está em causa [8]. Com efeito, o poema instaura uma espécie de visão caleidoscópica, porque esta se divide, pelo menos, em quatro pontos de vista diferentes: o de quem filma (quem pegou na máquina de filmar), o de quem vê filmar (há um «nós» que atravessa o poema), o de quem vê o que é filmado («do que se viu / na projecção do filme») e, por último, o da própria cabeça, porque filmar uma «cabeça em gravitação» é, inevitavelmente, filmar o que, por sinédoque, os olhos dessa cabeça vêem ou não vêem. A questão joga-se no «como» («como se fosse muito simples», «coisa tão remota e bárbara como: o fausto:/ o pavor: a caça», «paisagens redondas como abismos», «a queda “como oxigénio a arder”»): o poema faz-nos ver como (n)um filme. Lemos, então:
e havia em nós «um estilo de ver» que nos arrastava
implacavelmente para a loucura e a alegria
«porque era preciso destruir tudo» sim «de extremo a extremo»
para encontrar o «centro» onde o calcanhar gira
e roda o corpo todo
o sítio talvez onde se formam as massas dos espelhos
de que saltam fortemente «os astros os rostos»
e não haver «exemplo» mas apenas uma forma rudimentar
desfechada
contra tudo aqui escavando achado o veio
a limpidez primeiramente: aquilo: a cabeça móvel apanhada[.]
(Helder 1977d: 306)
«Ver como» é, aqui, um «“estilo de ver”», ver desregradamente, alucinadamente, de forma primitiva, arqueológica, o sítio não dominável «onde se formam as massas dos espelhos», lugar mesmo onde as imagens, refletindo-se e refratando-se, são livres. Não pode, então, paradoxalmente, haver «exemplo», ou seja, não há modelo nem lição, não há ilustração, há apenas «uma forma rudimentar/ desfechada»: a criação, livre.
E Jean-Luc Godard? Primeira hipótese: quando Helder escreve, em «(memória, montagem)», «Rimbaud partiu de todos os lugares para dimensões paralelas, e fez no poema presente a montagem do poema ausente; aparece um pouco como o discípulo ancestral de Godard» (Helder 1979: 140), talvez seja esta alucinação da visão e polifonia de vozes, imagens e escrita que está em causa.
Se até aqui vimos de que modo Helder se aproxima do cinema (filmagem, montagem, carácter heurístico da imagem, polifonia das vozes, grande plano), pensaremos agora a relação de Godard com a poesia. Para tal, como enunciámos, escolhemos o filme Je vous salue, Marie que levanta a problemática do visionarismo, a noção de imagem e a forma através da qual Godard pensa e trabalha a escrita no filme.
Em primeiro lugar, podemos afirmar que na obra de Godard – um autor que disse que o «texto» era o seu «inimigo mortal» e que tantas vezes afirmou a preponderância do princípio da imagem no seu cinema – a questão da linguagem e da escrita é uma questão primeira, com uma condição: há sempre a aspiração a uma linguagem que ponha em causa a própria linguagem. Esta ideia parece, frequentemente, exigir uma relação com o poema. Godard nunca advogou para si ser poeta, embora num filme de 1998, The Old Place, assinado por Godard e Anne-Marie Miéville, apareça a inscrição «Poète je suis», logo seguida de «Et rien n’y puis» (Godard 1998a: 15’23)9. Esta excepção toma um carácter deveras interessante por aparecer num filme assinado a quatro mãos, como se para haver poema tivesse de haver necessariamente dois, essa impropriedade que é a linguagem do outro, do eu e do tu – do «eu» com ou contra o «tu» –, fundamental em todos os filmes que assinaram em conjunto. Se Godard nunca se afirmou poeta, pelo contrário, afirmou-se sempre, enfaticamente, cineasta.
No entanto, a questão do poema e da poesia colocar-se-á na sua obra. Esta pode tomar, pelo menos, três formas: a primeira, num sentido abrangente, é a noção de poético, que tem que ver com uma indiscernibilidade dos géneros e com a potência crítica do e no poema (ou filme), na senda do Romantismo de Iena [10]; a segunda, o poema num sentido estrito, com a publicação dos filmes em poema (particularmente, a série «Phrases»), o poema «La Paroisse morte» (Godard 1991: 138) ou, recentemente, o poema em homenagem a Jacques Rivette (Godard 2016) [11]; e uma terceira via, que é aquela enunciada por Helder, quando aproximamos a montagem da estrutura do poema e de um fazer poético, na qual a ideia de ritmo toma um lugar fundamental.
Não vamos, aqui, explorar estes três sentidos, vamos deter-nos sobretudo no terceiro – que pode ser relacionado com o «estilo de ver» alucinado do poema de Helder – em Je vous salue, Marie, filme que põe em cena a Imaculada Conceição [12]. No filme de Godard, Marie (Myriem Roussel) é uma jovem rapariga comum, joga basquetebol, o pai possui uma pequena bomba de gasolina à beira de uma estrada, e que após a Anunciação – nessa mesma bomba de gasolina – vai ao seu médico de família para que ele possa comprovar cientificamente o milagre; Joseph (Thierry Rode) é um taxista que está, no início, entre duas mulheres, Juliette (Juliette Binoche) e Marie, ele é aquele que duvida. Há ainda uma espécie de pequena narrativa secundária: um professor (Johan Leysen), cientista, que dá aulas a alguns alunos e que mantém uma relação adúltera com uma delas, Eva (Anne Gautier). Podemos avançar que se esta é a narrativa visível do filme, no fundo, Je vous salue, Marie é mais um filme sobre o corpo que sobre o divino: o milagre é o do corpo.
Seguindo a ideia de «Rimbaud como discípulo ancestral de Godard» e, logo, a ideia de visionarismo, podemos pensar Je vous salue, Marie através de um «visionarismo literal». Trata-se de um visionarismo que se passa no encadeamento das imagens, isto é, entre as imagens, os sons e o discurso. Atentemos no momento da Anunciação: este é antecipado pelo aterrar de um avião, Marie penteia-se ao espelho e dá-se um falso raccord entre o plano do avião e o seu olhar que revela essa misteriosa chegada; no plano seguinte, o avião aterra; temos, logo de seguida, a confirmação do estranho olhar premonitório de Marie, pois o anjo Gabriel e a criança estão no aeroporto; alguns planos depois vemos Joseph a ler no táxi, no qual vão entrar o anjo e a criança, o carro parte; dois planos de estrada à noite depois, e os três chegam à bomba de gasolina do pai de Marie, onde ela também está, e a Anunciação tem lugar:
Marie. – Qu’est-ce que vous voulez ?
Ange Gabriel. – Et toi ?
Enfant. – Et toi ?
Marie. – Qu’est-ce que vous voulez ? Qu’est-ce que vous voulez ?
Ange Gabriel. – Et vous, mademoiselle ? [à Joseph :] C’est ta fiancée ?
Joseph. – Qu’est-ce que ça peut vous faire ?
Ange Gabriel. – On s’en fiche, mais tu vas avoir un enfant.
Marie. – De qui ?
Ange Gabriel. – Tu vas avoir un enfant.
Marie. – Je ne couche avec personne.
Joseph. – Marie, merde. C’est quoi, ces gens ?
Ange Gabriel [à Joseph]. – Tout droit. Voilà 500 dollars.
Marie. – De qui ?
Ange Gabriel. – Et il ne sera pas de lui. Jamais.
Marie. – De qui ?
Ange Gabriel. – Ne fais pas l’innocente.
Marie. – De qui ?
Enfant. – Marie, sois pure, sois dure. Ne cherche que ta voie/x.
Marie. – Ma voie/x ? Mon chemin ou le son de ma voix ?
Enfant. – Ne fais pas l’imbécile. J’ai ta parole et tu trouveras bientôt la tienne. N’oublie pas ! (Godard 1985: 12’40) [13]
Nesta cena, que começa no plano 37 (09’08), com o avião a chegar (avião que vem do céu, literalizando assim o movimento do anjo), e termina no plano 62 (13’59), com Joseph, o Anjo Gabriel e a criança a deixarem a bomba de gasolina no táxi enquanto Marie os observa, todos os passos da narrativa nos são oferecidos: avião, Marie, aeroporto, táxi, chegar a Marie, partir [14]. Godard parte da literalidade, sem elipses do ponto de vista da narração, sublinhando o quotidiano e a banalidade, porém, tudo se passa a um outro nível: sobretudo, no enigmatismo das palavras e da postura dos corpos. Je vous salue, Marie centra-se sobretudo na relação de Marie com o seu corpo, física e abstractamente. A literalidade da narrativa não serve, deste modo, uma qualquer fidelidade à visão, ao acontecimento, serve, principalmente, aquilo que a literalidade não pode mostrar: a dúvida, a aceitação, a crença. Podemos, assim, falar em sabotagem do visível, tal como falávamos das imagens helderianas que dão a ver, mas não são conceptualizáveis.
A montagem rápida desta cena imprime um ritmo sincopado, indo da profundidade de campo ao grande plano, da coreografia das personagens ao retrato de uma delas. Se em Helder falávamos da autonomia de uma parte do corpo, a cabeça, em relação com o grande plano, Godard, neste filme, vai preferir manter, predominantemente, o plano médio e o plano «de corpo inteiro», porque aqui a fragmentação do corpo de Marie (e o pôr em causa da racionalidade) passa-se no conflito do corpo consigo mesmo, conflito que passa não só pelas posturas – pensemos nas cenas em que Marie, no quarto, entra numa espécie de luta consigo própria –, mas também pela palavra (in e off). A este propósito, Godard afirmou que Marie não podia ser filmada somente em grande plano, porque o grande plano fá-la-ia devir um ícone, mas se, por outro lado, guardasse só o plano médio «o cinema não existiria», seria da ordem da «pintura»; tudo se passaria assim na procura da «boa» distância (cf. Godard 1984-1985: 7), na justa relação entre a câmara e o que esta filma, entre duas imagens e uma cadeia de imagens [15].
Esta justa relação tem também que ver com a própria noção de imagem em Godard, que nos pode levar a questionar o porquê de este dizer sempre «imagem» e não «plano». Para Serge Daney, há uma diferença fundamental entre os dois termos, colocando a ideia de duração no centro da distinção:
Belle formule de Rohmer : le cinéma, ce n’est pas des images, c’est des plans. […] La beauté d’un plan, sa justesse, est autre chose que la beauté d’une image. Le plan est musical, finalement. Respiration, rythme. Il y a «cinéma» quand, inexplicablement, ça respire entre les images. […]
Le plan, contrairement à l’image mais comme la musique, ne se reproduit pas, ne se cite pas : sa durée fait partie de lui. (Daney 1993: 22)
A definição de plano de Daney não é somente musical, mas também poética. Podemos, com efeito, perceber que se Godard utiliza constantemente o termo «imagem» e não «plano», tal prende-se com o facto de enquadrar a imagem cinematográfica numa tradição da imagem em sentido lato. Não obstante, cremos que a definição de Daney está muito próxima do cinema e do pensamento de Godard, porque as imagens cinematográficas estão, para o cineasta, matricialmente em relação com as imagens pictóricas, as imagens sonoras, a escultura ou, no caso que nos interessa particularmente, com a imagem poética [16].
Notemos, então, como este sentido musical e poético de plano se relaciona com a escrita em Je vous salue, Marie. Nele existe um único intertítulo, «En ce temps là», sem hífen, que se repete dez vezes. É, deste modo, a escrita no ecrã que anuncia o tempo. Na verdade, este intertítulo, que abre o filme, é uma interrupção da narrativa que tem como função, primeiramente, assinalar um tempo não cronológico, um tempo mítico, e, no seu contexto, o tempo da crença. Ele é, neste sentido, uma marca narrativa – como «era uma vez», «há dois anos», etc. –, cuja ambiguidade cria uma espécie de distância entre a narrativa e o tempo em que ela se passa. Consequentemente, estamos entre dois tempos: o tempo mítico da Imaculada Conceição e a banalidade do tempo quotidiano, tanto aquele onde Godard coloca a história das personagens e dos eventos quanto o tempo medido pelos elementos naturais através de um extenso número de planos do sol, nascente e poente, e, sobretudo, das várias fases da lua.
Queremos sublinhar que, no contexto de Je vous salue, Marie e da apresentação da Imaculada Conceição nos dias de hoje (os dos anos 80, para sermos rigorosos), escrever «En ce temps là» é tanto dar uma marca de verosimilhança à narrativa do milagre quanto bifurcar o caminho: o que vemos não se passa «num outro tempo», as imagens são nossas absolutas contemporâneas, são os anos 80. Por outro lado, a sua indefinição pode significar simplesmente «nesse tempo», o da história tal como ela é narrada no filme: Marie e Joseph, nossos contemporâneos, terão uma criança por concepção divina [17]. Este intertítulo, enquanto marca narrativa, poderia, então, inscrever-se numa linhagem dita clássica do cinema – poderia ser um intertítulo do cinema mudo (mesmo aceitando que a diferença entre clássico e moderno não se joga entre o mudo e o sonoro) –, porém, o que ele nos diz aponta para uma outra realidade, não localizável, o que o faz contradizer a lógica mesma que coloca em cena. É a escrita no ecrã, agramatical, que vem perturbar um sentido que se apresenta como primeiro.
No entanto, este intertítulo impõe ainda uma outra interpretação dada a forma como aparece escrito no ecrã, pois lemos «en ce temps» e abaixo «là». É precisamente uma lógica poética que se estabelece aqui: o encavalgamento. Deste modo, se a expressão «en ce temps-là» remete directamente para uma noção de tempo, a ausência do hífen e a posição do «là» pode ter uma leitura sobretudo espacial, sendo que esse «là», separado, pode interpelar o espectador, numa espécie de metalepse, podendo referir-se ao «aqui e agora» daquele que lê o intertítulo e que vê o filme. Consequentemente, o ver e o ler estão, neste intertítulo, dissociados. Vamos sempre ler a expressão gramaticalmente correcta «en ce temps-là», mas Godard impõe-nos a visão do ecrã para que esta (uma outra) leitura seja possível. Isto é, o intertítulo aqui é do domínio do visual (e da leitura como função do olho) e não da voz. É, assim, um princípio poético que rege este intertítulo.
Na verdade, se Godard se insurgiu muitas vezes contra o «texto», o seu «inimigo mortal», considerando-o do lado da lei e da ordem, é importante vermos de que modo o intertítulo aparece de forma paradoxal: a linguagem, a escrita, na sua cinematografia, só pode aparecer negando-se a si mesma, trabalhando os interstícios, fugindo sempre à lei. A questão não se esgota, porém, no paradoxo, a escrita é integrada como todos os outros elementos, não se superiorizando – pode ser lida tanto enquanto diegética quanto não diegética –, ou seja, a escrita em Godard, é um elemento que está em relação (e, por isso mesmo, muitas vezes em contradição) com todos os outros. O intertítulo tem, de certo modo, de devir imagem: motivo lido-visto como uma imagem, tão claro e tão obscuro quanto ela, obscuramente visível, tão lacunar quanto um plano.
É, deste modo, através das relações entre imagem e escrita, entre ver e ler, que podemos falar de Helder e de Godard como dois autores contra a gramática, para uma sintaxe livre das imagens.
***
Ver o poema como um filme, em Herberto Helder, ver o filme como um poema, em Jean-Luc Godard. Estas duas propostas de leitura das obras de Helder e de Godard não são fórmulas opostas ou de sentido lato, são, antes, dois gestos praticados e conceptualizados nas obras e, mesmo, enquanto ideias de obra. No fundo, uma afirmação não é possível sem a outra, no desejo de uma outra arte: o poema só pode ser visto como um filme se o filme for visto como um poema, e inversamente.
Filmografia
GODARD, Jean-Luc (realização)
1985 – Je vous salue, Marie, França/ Suíça/ Reino Unido, Pégase Films/ SSR/ JLG Films/ Sara Films/ Gaumont, 78 min, 35 mm; ed. ut.: Paris, Gaumont, 2010.
1989-1998 – Histoire(s) du cinéma, França, Gaumont/ JLG Films/ Périphéria, 214 min, video; ed. ut.: História(s) do cinema, Lisboa, Midas Filmes/ Fnac, 2007.
1998a – The Old Place. Small Notes Regarding the Arts at Fall of 20th Century, correalização de Anne-Marie Miéville, Estados Unidos da América, Museum of Modern Art de Nova Iorque, 47 min, video; ed. ut.: Four Short Films (livro e DVD), Gräfelfing, ECM, 2006.
Bibliografia
BRENEZ, Nicole
2005 – «Jean-Luc Godard, Witz et invention formelle (notes préparatoires sur les rapports entre critique et pouvoir symbolique)», Cinémas : revue d’études cinématographiques / Cinémas: Journal of Film Studies, vol. 15, n.os 2-3, pp. 15-43.
DANEY, Serge
1993 – L’exercice a été profitable, Monsieur, Paris, P.O.L.
DELEUZE, Gilles
1983 – L’Image-mouvement. Cinéma 1; ed. ut.: Paris, Éditions de Minuit, 1999.
1985 – L’Image-temps. Cinéma 2; ed. ut.: Paris, Éditions de Minuit, 2009.
DIOGO, Américo Lindeza
1990 – Herberto Helder. Texto, metáfora, metáfora do texto, Coimbra, Almedina.
GODARD, Jean-Luc
1984-1985 – «Jean-Luc Godard, la curiosité du sujet», entrevista conduzida por Dominique Païni e Guy Scarpetta, Art Press, «spécial Godard», n.º 4, dezembro, janeiro e fevereiro, pp. 4-18.
1991 – «La Paroisse morte», Trafic, n.º 1, Inverno, p. 138.
1996a – JLG/JLG. Autoportrait de décembre. Phrases, Paris, P.O.L.
1996b – For Ever Mozart. Phrases, Paris, P.O.L.
1998b – Histoire(s) du cinéma; ed. ut.: Paris, Gallimard, 2006.
1998 – Les enfants jouent à la Russie. Phrases (sorties d’un film), Paris, P.O.L.
1998d – Allemagne neuf zéro. Phrases, Paris, P.O.L.
1998e – 2 x 50 ans de cinéma français. Phrases (sorties d’un film), com Anne-Marie Miéville, Paris, P.O.L.
2001 – Éloge de l’amour. Phrases (sorties d’un film), Paris, P.O.L.
2010 – Film socialisme. Dialogues avec visages auteurs, Paris, P.O.L.
2016 – «[Depuis Parménide, et son duel]» in «Hommage à Jacques Rivette», 16 de Março de 2016: http://www.cinematheque.fr/article/793.html.
HELDER, Herberto
1973 – [Antropofagias]; ed. ut.: Ofício cantante, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, pp. 271-296.
1977a – Cobra, Lisboa, & etc.
1977b – Cobra; ed. ut.: Ou o poema contínuo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, pp. 303-332
1977c – [Etc.]; ed. ut.: Ofício cantante, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, pp. 297-302.
1977d – [Exemplos]; ed. ut.: Ofício cantante, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, pp. 303-316.
1978 – «A Poesia vitaliza a vida», carta de Herberto Helder a Eduardo Prado Coelho, Abril, n.º 1, fevereiro, p. 46.
1979 – Photomaton & vox; ed. ut.: 5.ª edição, revista e aumentada, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013.
1998 – «Cinemas», Relâmpago, n.º 3, Outubro, Lisboa, Fundação Luís Miguel Nava e Relógio d’Água, pp. 7-8.
2009 – Ofício cantante. Poesia completa, Lisboa, Assírio & Alvim.
2015 – «Vinte e cinco cartas» [dirigidas a Gastão Cruz], Relâmpago, n.os 36-37, Abril/Outubro, Lisboa, Fundação Luís Miguel Nava, pp. 137-195.
LOPES, Silvina Rodrigues
2003 – A Inocência do devir, Lisboa, Vendaval.
MARTELO, Rosa Maria
2012 – O Cinema da poesia, Lisboa, Documenta.
2014 – «Livros, filmes, metalepses», Falso movimento, n.° 2.
VERNANT, Jean-Pierre
1985 – La Mort dans les yeux. Figures de l’autre en Grèce ancienne; ed. ut.: Paris, Hachette, 1998.
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O presente ensaio foi desenvolvido no âmbito do Programa Estratégico Integrado UID/ELT/00500/2013 ; POCI-01- 0145-FEDER-007339
NOTAS
1. Este ensaio retoma algumas ideias desenvolvidas na tese Modos de ver, modos de escrever. Da imagem e da escrita em Herberto Helder e em Jean-Luc Godard, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto em Janeiro de 2016.
2. As obras onde esta relação é mais explorada são Antropofagias (1973), Cobra (1977) e Photomaton & vox (1979) – pensemos, por exemplo, em «(photomaton)», «(a paisagem é um ponto de vista)», «(filme)», «(magias)», «(feixe de energia)», «(guião)», «(memória, montagem)» –, mas não esqueçamos, por exemplo, o texto «Cinemas», publicado no n.º 3 desta mesma Relâmpago. Notemos, ainda, que se há a preponderância de uma ideia de cinema nestas obras, esta não se esgota nelas.
3. Helder explicita-o numa carta de 1977 a Eduardo do Prado Coelho: «As versões têm variado de destinatário para destinatário, não atendendo a qualquer conjunto de peculiaridades dos destinatários, mas porque o livro, em si mesmo, digamos, flutua. É um livro em suspensão. Talvez só essa suspensão seja citável. Não é excitante que um livro não se cristalize, não seja «definitivo»? Mas parece que esta seu quê «perversa» evasão à gravidade tende a anular-se, pela imposição de novos poemas. Suponho que já dei ao livro todo o peso que ele esperava: há uma versão, que não é nenhuma conhecida dos destinatários, e o acréscimo de outros dois textos, que introduziram nova ordem de leitura na parte final do livro e, portanto, uma inclinação de sentido./ Gostei da sua pergunta sobre o que seria citável. Sim, o que é citável de um livro, de um autor? Decerto, a sua morte pode ser citável. E, sobretudo, o seu silêncio» (Helder 1978: 46). Cobra é um livro que atinge, assim, uma espécie de limite: o mesmo livro que se pode ver sempre como outro livro.
4. «Exemplo», enquanto título, pode ser lido em vários sentidos: algo que se propõe como modelo passível de ser imitado; algo que pode servir de lição ou aviso pelo seu rigor; algo que pode servir a confirmar, a ilustrar, a dar uma ideia mais clara; no mesmo sentido que a locução adverbial «por exemplo», com valor demonstrativo, serve para ilustrar um caso particular ou para introduzir uma citação. Num «exemplo» está, então, sempre contido um «como», uma analogia, porque este exige uma relação, seja ela de comparação ou de semelhança, e torna-se, por isso, evidente a sua repetição nos poemas de Exemplos. É por esta razão que podemos pensar a hipótese, com o devido cuidado, de «Exemplo» poder ser lido como exemplo de «Memória, montagem», e consequentemente de um poema poder ser visto como um filme.
5. Helder, numa carta dirigida a Gastão Cruz e datada de 15/07/1977, afirma esta ligação referindo-se a «E outros exemplos»: «Os poemas [...] no essencial estão conformes com o que pretendo neste momento, que é uma espécie de “carnificina da escrita”, o que não deve ser confundido com “prosaísmo”. Antes alguma coisa como um estilo canhestro, grosso, e ao mesmo tempo rebarbativo. Tenho uma estranha confiança nestes textos» (Helder 2015: 152).
6. Um pouco antes, Deleuze escreve: «Comme Balazs le montrait déjà très précisément, le gros plan n’arrache nullement son objet à un ensemble dont il ferait partie, dont il serait une partie, mais, ce qui est tout à fait différent, il l’abstrait de toutes coordonnées spatio-temporelles, c’est-à-dire il l’élève à l’état d’Entité. Le gros plan n’est pas un grossissement et, s’il implique un changement de dimension, c’est un changement absolu. Mutation du mouvement, qui cesse d’être translation pour devenir expression» (Deleuze 1983: 137).
7. Seguindo a sugestão de Américo Lindeza Diogo, em Herberto Helder. Texto, metáfora, metáfora do texto, e de Silvina Rodrigues Lopes, em A Inocência do devir, cremos também que um dos motivos fundamentais de Cobra é o mito de Perseu e Medusa (cf. Diogo 1990: 16-17, 22-24 e Lopes 2003: 50 e ss.) e, logo, que uma das formas de ler esta «cabeça» helderiana – presente em todos os poemas de Exemplos – encontra-se na sua relação com a cabeça de Medusa. Como lembra Jean-Pierre Vernant, o tema central deste mito é: «celui de l’œil, du regard, de la réciprocité du voir et de l’être-vu» (Vernant 1985: 77). A Górgona Medusa em vez de cabelos tem a cabeça repleta de cobras e é a incarnação mesma da morte. É impossível olhá-la de frente, nos olhos: olhar a cabeça de Medusa significa transformar-se em pedra (em estátua), a morte vem como absoluta e imediata paralisação da vida. Medusa é verdadeiramente uma cabeça, ela é, ao contrário das convenções de representação gregas, sempre representada de frente, olhando o seu espectador
(cf. Vernant 1985: 31-32). Neste sentido, a «cabeça furiosa» do poema de Helder pode ser lida precisamente como o confronto com a própria morte: ela seria a incarnação mesma do «arrasar tudo», de «destruir tudo», «sim, “de extremo a extremo”». Quando Perseu vence a Medusa, fá-lo, contudo, através de um estratagema: nunca a olha nos olhos, olha-a através do reflexo no escudo. A máquina de filmar do poema helderiano parece, então, manter a ambiguidade: ela salva (da morte, da destruição e mesmo da teoria como morte da vitalidade do pensamento), mas ela é também o contacto mais próximo com ela. Se a máquina de filmar está próxima de «usar os olhos com a ferocidade das objectivas/ sem truques capturando tudo selvaticamente», há, por outro lado, o que se vê «na projecção do filme» e a cabeça é vista recorrendo (e é precisamente o verbo «recorrer» que Helder utiliza) «a imagens». A «cabeça móvel apanhada» é, então, tanto a salvaguarda da vida quanto esse limiar próximo da morte, não esquecendo que Perseu ao conquistar a cabeça de Medusa propaga o seu efeito, utilizando-a por sua vez para vencer os seus inimigos transformando-os em pedra. Na sequência do que dissemos sobre o grande plano, podemos ver que a cabeça da Medusa contém em si já essa abstração de coordenadas e inversão (e reinversão) de elementos e/ou do seu significado.
8. A este propósito, lembremos a fórmula de Deleuze: «Pour l’œil du voyant comme du devin, c’est la “littéralité” du monde sensible qui le constitue comme livre» (Deleuze 1985: 34).
9. As referências aos minutos de cada filme correspondem aos DVD indicados na filmografia, visualizados no programa VLC media player.
10. Na verdade, a fi-liação de Jean-Luc Godard com o Romantismo de Iena tem sido recorrentemente explorada. É, a este propósito, de grande relevo o ensaio que Nicole Brenez dedicou à questão: «Jean-Luc Godard, Witz et invention formelle (notes préparatoires sur les rapports entre critique et pouvoir symbolique)» (2005).
11. A série «Phrases» é um conjunto de livros, publicados sob os mesmos títulos que os filmes, nos quais os diálogos dos filmes são transformados em longos poemas em verso (não são acompanhados por imagens). Na contracapa destes livros, há um poema, «[phrase]», que é uma definição de «frase», que acentua, com alguma ironia, o carácter poético da mesma: «phrase/ unité du discours/ partie/ d’un énoncé/ généralement formé/ de plusieurs mots/ ou groupe/ de mots/ dont la construction/ présente un sens/ complet/ phraser/ jouer/ en mettant/ en évidence/ par des respirations/ le développement/ de la ligne/ mélodique». O mesmo poema aparece nos restantes livros da série: For Ever Mozart (1996), 2 x 50 ans de cinéma français (1998), com Anne-Marie Miéville, Les enfants jouent à la Russie (1998), Allemagne neuf zéro (1998), Éloge de l’amour (2001).
A assinalar que nos livros publicados em e depois de 1998, ao subtítulo é acrescentado um parêntesis na página de rosto
(e não na capa): «Phrases (sorties d’un film)». Também no mesmo formato, a edição do livro Film socialisme (2010) já não é publicado sob o subtítulo «Phrases», mas sim «Dialogues avec visages auteurs», e na contracapa lemos apenas: «Dialogue, foutre ! Stendhal, 26 novembre 1834». Este é o primeiro livro da coleção que retoma em certa medida a lógica das Histoire(s) du cinéma (num formato menor, a preto e branco), publicando imagens junto do poema.
12. Je vous salue, Marie, no momento do seu lançamento e depois em certas edições em DVD, é exibido em conjunto com uma curta- -metragem (que o antecede) de Anne-Marie Miéville, intitulada Livre de Marie (1983), que não trataremos aqui.
13. O momento da Anunciação é bem delimitado, porque é antecedido e sucedido por duas cenas que fazem parte da narrativa secundária e paralela à de Marie: o professor e os alunos – primeiro na sala de aula, depois num passeio à beira do lago – discutem a origem da vida.
14. Lembremos que também Helder escreveu «sobre» a Anunciação. Trata-se de um texto de Photomaton & vox, «(motocicletas da anunciação)», no qual Helder explora a relação entre ver, velocidade e poema. Se em Godard o anjo chega de avião, em Helder trata-se de uma motocicleta. A «Anunciação» é a de Fra Angelico, referida explicitamente, porém este não especifica de que «Anunciação» do pintor se trata, e a motocicleta é o motivo ausente, mas central: «Temos assim a motocicleta. A motocicleta aparece na Anunciação de Fra Angelico. Encontra-se do lado esquerdo do quadro, fora dele, pois ao tempo a motocicleta não se investira ainda de valor moral, político e estratégico. Maiakovski fala da bicicleta como de um instrumento indispensável ao exercício poético. O poeta deve andar por toda a parte, de bicicleta veloz, para recolher as formas imediatas em que o mundo está a ser. A motocicleta é mais rápida, e o anjo tem toda a vantagem em ir, vir, aparecer, munido de motocicleta» (Helder 1979: 101-102).
15. A ideia de «justa relação» ecoa a célebre fórmula godardiana, do filme Le Vent d’Est (1970), retomada nas Histoire(s) du cinéma: «ce n’est pas une image juste, c’est juste une image».
16. Lembremos, por exemplo, a citação de Pierre Reverdy – em Passion (1982) e também nas Histoire(s) du cinéma (1989-1998) – que Godard utiliza como forma de pensar a imagem cinematográfica: «une image n’est pas forte parce qu’elle est brutale ou fantastique, mais parce que la solidarité des idées est lointaine et juste».
17. Godard parece perguntar: que tempo é esse, o da crença? O título Je vous salue, Marie é o início da «Avé, Maria» em francês, que figura a Anunciação: é o cumprimento que o anjo Gabriel dirige a Maria quando a visita e lhe anuncia que será mãe do Filho de Deus (Mateus I, 18-25 e Lucas I, 26-38). Se este seria o tempo mítico, por outro lado, há uma oração, o «Angelus», feita tradicionalmente ao meio-dia em todo o mundo, que marca a recordação desta passagem bíblica, mas que tem para os cristãos, acima de tudo, a memória dum momento de valor histórico e espiritual: o momento em que um humano diz «sim» a Deus com toda a confiança (Maria não é apenas a escolhida, é aquela que diz «sim») e que simboliza o destino de toda a humanidade a partir desse encontro. No fundo, o tempo mítico, neste filme, é concomitante ao tempo quotidiano, banal, diário, não há uma verdadeira cisão. De notar também que a narrativa de Je vous salue, Marie se concentra, sobretudo, no momento da Anunciação e o que se lhe segue imediatamente: a crença de Marie, a descrença de Joseph, a relação de Marie com o acontecimento, com a crença e com o seu próprio corpo. Só, sensivelmente, os últimos 10 minutos são dedicados ao desfecho (Marie visivelmente grávida, o nascimento, a criança).
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