Um dos conceitos operativos mais importantes na Poética de Aristóteles, o primeiro tratado prescritivo sobre o fenómeno literário, é a verosimilhança. Para o teórico grego, e ao contrário do seu mestre Platão, a arte representa o que a realidade é para o artista, que anteriormente entra em contacto com essa mesma realidade para dela retirar ou produzir um retrato subjectivo. Assim, a verosimilhança, numa obra literária, é espelho ou mimese, para usar esse outro conceito aristotélico e platónico, dessa mesma construção da realidade por parte do escritor, um “parecer possível”, como o diz no capítulo IX.
Todo este arrazoado vem a propósito do novo livro de Pedro Eiras, Cartas Reencontradas de Fernando Pessoa a Mário de Sá-Carneiro. Digo que o livro é seu, e dessa autoria a capa é bastante explícita, mas o que efectivamente aqui se tenta oferecer é o autor querendo ser outro fingindo sê-lo, com a autoridade que a ficção lhe confere.
Esta ficção epistolar tem, assim, por base a ausência real que o adjectivo “reencontradas” do título denuncia – à excepção de uma cópia dactilografada e dois rascunhos, nada sabemos, hoje, das cartas que Fernando Pessoa escreveu para Mário de Sá-Carneiro, nesses quatro anos de ávida correspondência e amizade (1912-1916). Para todos os que não conhecem os seus detalhes, a história desse mistério é resumida na ‘breve explicação’ que começa o livro; mas mais do que informar o seu público da contextualização histórica do seu objecto, Pedro Eiras aproveita-a para relançar a base da sua própria representação – aproveitando um colóquio, numa ida a Paris, no fim do ano de 2015, vinte anos depois de o ter feito pela primeira vez, PE resolve passar pelo Hôtel de Nice, onde o poeta português se havia suicidado. E eis que começa a ficção, o contrato com o leitor se estabelece:
“Admito que é absolutamente inverosímil as cartas de Pessoa estarem pousadas sobre uma arca naquela arrecadação, naquele início de uma tarde de Outubro de 2015, no dia em que, por acaso, decidi passar pelo Hôtel des Artistes. Porém, contra toda a inverosimilhança, assim foi.”
Ficção, realidade? A verdade é que a questão de verosimilhança faz diluir um pouco as fronteiras, e nem é questão que deva interessar ao leitor que se imiscua verdadeiramente neste discurso epistolar e literário. Na realidade, Pedro Eiras, professor de Literatura na Universidade do Porto, revela conhecer bem o seu objecto e trata estas cartas como se de uma edição crítica fosse, em numerosos pormenores. Sabe, por exemplo, que terá de manter a grafia “Fernando Pessôa”, que o poeta lisboeta só abandona em favor de uma maior internacionalização no final de 1916 (p. 16), ou que terá de contextualizar esta correspondência no seio das outras edições críticas existentes (p. 17), misturando-as eventualmente, como acontece, quando tal acção seja pertinente (o caso da carta de 6 de Dezembro de 1915, carta 38, já anteriormente revelada). De forma a ser ainda mais fiel ao provável e/ou possível destino das cartas do primeiro período parisiense de Sá-Carneiro (1912-14), a que se alude na pág. 15, o autor concentra o seu corpus nas cartas de 1915-16 – “este livro inclui todas as cartas de Fernando Pessoa que encontrei no Hôtel des Artistes, contemporâneas da última estada de Sá-Carneiro em Paris, entre 1915-16.” (p. 15).
Posto isto, creio que há dois caminhos de leitura destas cartas – uma leitura directa, sem interferência do negativo deste diálogo, ou então uma leitura mais comparativa com as cartas e postais de Sá-Carneiro, uma leitura igualmente rica, e que ainda é mais reveladora do imenso trabalho investido pelo seu autor.
Sigamos este caminho. Em primeiro lugar, devemos logo atentar num aspecto de interligação entre a estrutura interna e externa desta correspondência. Ao todo, as cartas e postais aqui coligidos são 70, no período de 10 meses que dista Julho de 1915 a Abril de 1916. De acordo com a última e mais completa resenha da correspondência de Sá-Carneiro, editada por Jerónimo Pizarro e Ricardo Vasconcelos, para o mesmo período de tempo [Mário de Sá-Carneiro, Em Ouro e Alma – correspondência com Fernando Pessoa, Tinta da China, Nov. 2015], o autor de Dispersão foi ainda mais prolífico, tendo escrito cerca de 110 cartas e postais. Mais uma vez, tal desfasamento é verosímil e justificável. Por um lado, sabemos que Pessoa trabalhava muito, e assim desculpa a ausência e as cartas pouco longas [cf. carta 7, por ex.] por outro, a culpa de escassas missivas será das “mil pequenas arrelias” [postal 37, p. 98] que continuamente vão interferindo no seu tempo. Por outro lado ainda, é de lembrar que os próprios correios durante a guerra não seriam tão eficazes, e provocariam desencontros e esperas inevitáveis numa correspondência que até então seria quase diária.
Este terceiro aspecto e dificuldade é, aliás, aflorado logo a início do livro, na carta inicial (p. 19), bem como na segunda missiva [“Recebi uma carta sua que levou oito dias a alcançar Lisboa. Já vê os grandes estragos que a guerra faz nos correios europeus”, p. 23], desta feita um postal, onde se ilustra bem o diálogo profícuo que terá existido entre os dois. Como se sabe, grande parte da obra poética de Sá-Carneiro veio transmitida a Pessoa nas cartas que o primeiro lhe escreveu. Neste postal, de 2 de Agosto de 1915, agradece-se assim o envio do poema “Escala”, enviado efectivamente numa carta de 26 de Julho de 1915, e acaba sendo brevemente comentado.
Mais curioso ainda é, no outro lado do espectro temporal, o telegrama de 13 de Março de 1916, [número 62, p. 145], do qual consta apenas uma palavra – “oui”. Para o leitor inocente destas cartas pode não constituir grande surpresa, ou não fazer grande sentido, mas intui-se desde logo uma resposta a algo que o seu interlocutor lhe pedia. Somos por fim elucidados ao ler a carta de Sá-Carneiro de 7 de Março de 1916, onde este diz a Fernando Pessoa – “É duma importância capital o que lhe pedi por carta. Diga-o bem à minha Ama. Siga à risca as minhas instruções: cheque telegráfico Crédit Lyonnais. Tenha dó de mim. Quando mandar o cheque telegrafe-me para meu sossego um “Oui”. Conto consigo. Entrego-me nas suas mãos. Mil Saudades e abraços e perdões do Sá-Carneiro.” Poderia dar muitos mais exemplos deste jogo dialogante de Pedro Eiras, mas penso serem bastante paradigmáticos os que já foram assinalados.
Comecei por falar de verosimilhança com Aristóteles e assim acabarei: Estas são, em suma, as cartas que Fernando Pessoa poderia efectivamente ter escrito para Mário de Sá-Carneiro, e sobre isto não poderá restar qualquer dúvida. Elas são produto de uma boa e bem executada ideia borgesiana do seu mediador-autor, Pedro Eiras, que revela conhecer bem aquele que foi um dos encontros fundamentais da nossa literatura.