Para o Luís Quintais
No final de 2016 a Penguin publicou a tradução de um longo ensaio de Javier Marías sobre Veneza, Venice: an interior. O texto foi originalmente escrito em 1988. Entre as páginas 52 e 53 lê-se:
When you have lived for a while in a city, especially if it has proved to be an intense experience and happens to coincide with one of those ages so crucial in one’s lives... regardless of how much time passes, you never stop thinking about that place. You carry it around you, it becomes part of you, and I often have the strange feeling that I could leave my apartment in Madrid... and head straight for some particular spot in that distant city... to the Zattere or San Trovaso if it’s Venice, to St. Giles or Blackwell’s if it’s Oxford...
Em Venice: an interior, Javier Marías conta como começou a escrever um dos romances decisivos da sua carreira em Veneza e como até, a certa altura, pensou em mudar-se definitivamente para a cidade. A geografia de Veneza nomeada pelo autor espanhol neste trecho não me é tão imediatamente clara como a de Oxford. Blackwell’s é a maior livraria da cidade. Originalmente fundada por Basil Blackwell não ocupava na altura mais do que alguns metros quadrados num edifício em frente à Bodleian, a biblioteca central da universidade. Ocupa hoje um quarteirão, com quase todo um piso dedicado às clássicas, várias secções dedicadas à literatura, uma parte imensa do piso inferior, a Norrington Room, dedicada à filosofia. Há no primeiro andar um café com janelas altas, que continuam a dar para a biblioteca central e, para lá da confusão do espaço ocupado pelo café, uma salinha mais interior, onde há uma lareira e o retrato a preto e branco de um dos Blackwells. Nos últimos dois ou três anos, ao fim das tardes durante a semana, tenho-me sentado nesta sala para escrever, sob os auspícios do olhar assertivo do Sr. Blackwell, que tem mais aspecto de explorador do século XIX do que de livreiro. À distância de um século, o cabelo impecavelmente aparado, o rosto barbeado com a excepção do bigode, Basil Blackwell faz-nos pensar mais num hábil mercador ou num geólogo, do que num livreiro. Algo neste rosto falha a adequação deste espaço ao projecto do seu fundador. E no entanto, este é o nome que mais tarde primeiro viria dar à estampa as Investigações de Wittgenstein, na tradução de G.E.M. Anscombe.
Quem sobe ao primeiro andar para ir ao café da Blackwell tem de passar obrigatoriamente pela secção de poesia, onde de mês a mês os livreiros listam as novidades, às vezes deixando um cartão junto do expositor em que os livros estão, explicando porque é que este ou aquele livro deve ser lido. Há uma mistura de edições independentes, algumas puramente locais, e as chancelas de poesia de grandes grupos editoriais. O último livro de poemas que aqui comprei foi o de André Naffis-Sahely, The Promised Land. Naffis-Sahely é um autor nascido em Itália, de mãe italiana e pai iraniano e que escreve em inglês. O seu primeiro livro é um volume magrinho, com chancela da Penguin, que cobre uma distância que vai de Veneza a Abu Dhabi passa por Londres e acaba nos Estados Unidos, em cidades recônditas, algumas de estados bem interiores. O poema que fica na cabeça é aquele em que ele conta de como uma vez brigou com o irmão e o esmurrou e há uma linha em que ele diz, and then all hell broke loose, uma expressão para a qual não me ocorre um equivalente imediato em português. Mas é agradável ler os poemas de Naffis-Sahely, sobretudo os da primeira parte do livro, de manhã no comboio apontado em direcção a Londres, no meio dos executivos de pasta que se ficam pelo caminho, em Radley e Didcot e Reading, paragens ainda adormecidas, sepultadas num torpor primeiro rural e suburbano depois. Muitos dias de seguida estas paragens sepultadas na chuva e no nevoeiro, sem um momento de azul, exactamente como descrito por um poeta italiano de meados do século XX, Eugenio Montale, num poema sobre limões:
Mas a ilusão perde-se e o tempo transporta-nos
até ruidosas cidades onde o azul se mostra
apenas em pedaços, no alto, entre os telhados.
Então a chuva cansa a terra: concentra-se
o tédio do inverno sobre as casas,
a luz torna-se avara – a alma amara.
No café da Blackwell há uma mistura de gente cuja ocupação é mais ou menos óbvia à primeira vista. Há os estudantes e os académicos que se sentam a ler ou a conversar, ou silenciosamente absortos de computador aberto e há os turistas e aqui se arruma uma descrição geral da população que domina Oxford durante a maior parte do ano. Há uma porção destas pessoas que tem de ser poeta ou romancista de coffee shop, todos os dias aqui sentados, a urdir frases para nada, ou talvez um deles seja o próximo Larkin ou o próximo Hitchens, autores ligados a Oxford a quem não faltam acólitos.
Há apenas um momento de limbo na vida deste café, entre a segunda semana de Dezembro e o fim do ano, quando os estudantes se vão embora, as bibliotecas fecham e os turistas não vêm até estas paragens – com a excepção bizarra de uma ou outra estirpe mais resistente de turistas asiáticos. É então que os misantropos como eu se enchem de alegria. As principais artérias da cidade, intransitáveis durante a maior parte do ano, ficam vazias, o memorial de St. Giles enche-se de neve, a rotação da rotina abranda até um mínimo ponteiro que não sobe para lá de um amarelo mortiço, e os poetas desta cidade, que devem muito provavelmente escrever em quase todas as línguas do mundo, comportam-se como personagens num poema de Billy Collins, bebendo um café que é preparado com toda a elaboração do mundo até ebulir em anónimas cafeteiras que chiam nos discos de fogões eléctricos, em cozinhas com janelas com vista apontada em direcção ao memorial de Shelley, porque é assim que as janelas dos poetas em Oxford devem funcionar. O memorial de Shelley é uma escultura de mármore encerrada entre quatro paredes no University College, o colégio onde Shelley efemeramente estudou e de onde foi expulso não muito tempo depois de ter sido aceite, por causa de um panfleto em defesa do ateísmo, de que nem sequer é certo que ele tenha sido o único autor, The necessity of atheism. Há numa versão desse texto uma alusão a um excomungado de outra categoria e de outro século, Espinosa, e o escândalo que o panfleto gerou na altura em que circulou em Oxford tem contornos que justificam o paralelo com o filósofo holandês. No entanto, enquanto a comunidade judaica de Amsterdão nunca revogou a sua decisão de excomungar Espinosa – nem sequer hoje, tantos séculos depois, Shelley é um dos alumni mais famosos do University College e o colégio faz questão de recordar que Shelley foi um dos seus mais distintos estudantes.
Há dois ou três traços nesta história que podiam bem sumariar o efeito de Oxford nos poetas que por aqui passam, e vice-versa. A resistência perante a autoridade vigente, uma certa suspeita intelectual que leva a que seja desafiada, a provocação aberta, a inevitável rejeição institucional que se lhe segue e, muitos anos mais tarde, o reconhecimento por parte das instituições em causa. Ou podíamos apenas especular até que ponto Shelley aprovaria as palavras de T.S. Eliot sobre a cidade: Oxford é muito bonita, mas não me agrada estar morto.
Muitas frases foram escritas por poetas a favor e contra Oxford. J.R.R. Tolkien, que bem vistas as coisas é autor de linhas de poesia de gosto discutível, viveu aqui a vida quase toda, confundindo-se a espaços com algumas das personagens mais prósperas do seu Shire ficcional em tempo de paz, bebendo regularmente umas cervejas com C.S. Lewis num pub que ainda hoje existe e fica no quarteirão que Javier Marías refere, o Eagle & Child em St. Giles.
Podia daqui concluir-se que não há nada de específico acerca de se ser um poeta em Oxford, é igual a qualquer outra parte do mundo. No entanto, entre 1943 e 1944, enquanto era estudante em St. John’s College, Phillip Larkin escreveu o primeiro dos seus únicos dois romances, Jill. Passado em Oxford nos anos em que Larkin o escreveu, ou seja, durante os anos da Segunda Guerra, o romance retrata a breve e frustrada paixão de um estudante, John Kemp, pela prima de uma amiga do seu colega de quarto, Christopher Warner. Kemp é inexperiente e inteligente, Warner é um tipo de personagem que continua a não escassear em Oxford mais de meio século depois, o pacóvio bully oriundo de uma upper class vagamente decadente (a do género que sente o dever de nos premiar com a informação de que a sua mãe é gentry enquanto mastiga uma sandes de duas libras ao almoço, de resto como todos nós, mortais não gentry) e entre os dois desenvolve-se uma dinâmica nociva que termina inevitavelmente com uma tomada de consciência da parte de Kemp – sobre classes sociais, sobre o amor e a atracção, sobre o modo como o mundo funciona, sobre cidades intelectualmente avançadas e muito provincianas ao mesmo tempo.
Larkin teve sempre uma relação conturbada com este romance, que começou imediatamente no processo de publicação, envolveu uma rejeição posterior e uma eventual tentativa de revisão. Jill foi o primeiro livro que li em Oxford e não entendo ao certo porque é que Larkin o quis rejeitar. A impressão que fica, a quase seis anos de distância, é a de uma meditação cuidada acerca da relação entre auto-conhecimento e arte, o prazer que pode advir de contar uma mentira elaborada a um colega parolo, uma revolta contra convenções pré- -estabelecidas e a liberdade que daí advém. Há uma descrição pormenorizada de chegar a Oxford de comboio, quando nunca antes se tinha atravessado para o Oxfordshire, que permanece com o leitor muito tempo depois, e de pedalar num dia de neve, numa história que envolve uma luva que se perde, seguindo o vulto de uma rapariga em direcção ao norte de Oxford, de todas as zonas da cidade aquela que mais raramente atravesso. Há esta coisa acerca de Oxford que talvez seja tão definitiva para a actividade de escrever poesia como para a de cultivar qualquer outra arte – e que o romance de Larkin representa bem – que é o facto de em Oxford se ter uma sensação constante de esta ser uma cidade efémera, de passagem, onde é preciso usufruir ao máximo do tempo que nela se passa, apesar de ela estar aqui há oitocentos anos. A nossa vida em Oxford acontece envolta numa atmosfera amarga e doce, produto de um sentimento de nostalgia que é em parte o resultado de a cidade estar ao mesmo tempo envolta em história e fora do tempo. Nem antiga nem exactamente contemporânea, porque as tradições que explicam o que nela existe de mais específico constantemente colidem com uma vontade de progresso, de correr à frente do tempo.
Eu vivo na parte sul da cidade, num bairro rodeado por um parque e ligeiramente acima do rio. A minha casa fica em frente a uma igreja protestante de meados do século XIX. Em noites de inverno os vitrais escoam uma luz amarela e púrpura que atravessa as janelas da minha sala às escuras, sublinhando os livros nas estantes abaixo dela. Os livros nessa estante são toda uma colecção de diferentes edições do mesmo livro, a Ilíada. Às vezes, em noites de insónia, há linhas desse poema que voltam, em grego, ou em inglês ou em português. Dos livros que povoam as minhas estantes talvez nenhum alguma vez me venha a inspirar tanta curiosidade, e uma certa espécie de terror, como os poemas de Homero. Porquê terror? Vindos sabe-se de lá onde, ou quando, ou por que mão, qualquer coisa neles é fiel da trajectória de uma vida inteira, como se a maior parte das situações que vivemos variasse apenas por contingências mínimas ao longo de vários séculos. Esta proximidade com o muito antigo (que não é exactamente passado), é afinal também uma característica que se aplica a Oxford. Boa parte das tradições ligadas à universidade mantém-se as mesmas ao longo dos séculos. E não apenas a universidade, há um pub que está no mesmo sítio desde o século XII.
Se nos perguntarmos o que é a relação de um poeta com a sua arte, podemos imaginar as Danaides com os seus vasos, tal como as pintou um pintor inglês de inícios do século XX, Waterhouse. As Danaides de ombros e seios desnudos, cabelos apanhados, vestidos de cores berrantes, carregam aos ombros vasos que vertem para um vaso maior que não sendo selado verte a água para um curso que não se vê e assim sucessivamente, por toda a eternidade. Qualquer coisa nisto é análogo à relação entre a poesia e a realidade, uma alimenta a outra. Qualquer coisa nisto é também análogo ao fluxo de poetas em Oxford, que partem e regressam deixando uma ou outra marca, mas sempre dando lugar aos seguintes. De todos os poetas que li ou ouvi ou conheci em Oxford, incluindo Geoffrey Hill, que era o Oxford Professor of Poetry quando eu aqui cheguei em 2012, nenhum me inspirou uma obsessão tão constante como Homero. Afinal, esta é uma cidade onde ele tem sido estudado intermitentemente por mais de oitocentos anos. E foi nesta cidade que eu primeiro li Anne Carson, em cujo livro The Beauty of the Husband há a seguinte alusão ao autor grego:
All myth is an enriched pattern,
a two-faced proposition,
allowing its operator to say one thing and mean another, to lead a double life.
Hence the notion found early in ancient thought that all poets are liars.
And from the true lies of poetry
trickled out a question.
What really connects words and things?
Not much, decided my husband
and proceeded to use language
in the way that Homer says the gods do.
De “Tango VII”
O uso da linguagem a que Anne Carson aqui se refere – como o fariam os deuses – é uma alusão ao facto de as afirmações dos deuses não terem qualquer obrigação para com a verdade. O que é que me deu Oxford que Javier Marías não tenha anotado com melhor precisão, até ao detalhe de agora saber que em Oxford nos importam as mesmas ruas? Talvez me tenha dado uma habilidade para a errância que é resultado indirecto disso a que Anne Carson alude neste excerto, o facto de todos os poetas serem mentirosos, de haver um certo desassossego da imaginação que por certas ruas a certas horas persegue certas mentiras e as agrilhoa a poemas. Há nesta cidade duas ou três ruas onde martelei durante longas horas muitas milhas de palavras em cadernos, ao jeito dos escribas medievais, anotando como quem bate com a cabeça na mesa, contra o frio e o cansaço, abrindo uma janela para deixar o ar circular, outras vozes interrompendo a voz dentro da nossa cabeça, fazendo-nos perder o fio à meada. Só se aprende a escrever falhando e todos os poetas dizem mentiras verdadeiras, mas primeiro precisam de aprender. Oxford é sobre isso. Luís Miguel Nava, que foi leitor de português em Oxford antes de partir para Bruxelas, disse-o de outra forma:
Olhando para trás, apercebo-me duma linha em função da qual as coisas ganham todas um relevo específico e que faz das diversas cidades onde tenho residido – Viseu, Lisboa, Oxford, Bruxelas – espaços que a partir das relações que entre si mantêm se iluminam duma luz que está dentro de mim e a que jamais conseguirei que qualquer outra pessoa igualmente possa contemplá-los.[1]
É também por isto que Oxford é um pouco como a Ítaca no poema homónimo de Kavafis: é preciso partir de Oxford para entender o que ela significa.
Há em Woodstock, uma vila a poucas milhas de Oxford uma velha igreja metodista. Foi aqui que primeiro ouvi a performance de Alice Oswald do seu livro Memorial, uma adaptação Ilíada. Alice Oswald é uma classicista que estudou no New College em Oxford. O seu segundo livro, Dart, venceu o T.S. Eliot em 2002. Sobre adaptar a Ilíada para um oitavo do tamanho original do poema, Alice Oswald declarou que era um pouco como retirar o telhado a uma igreja para recordar de onde vem a força que emana desse espaço. Por essa altura, um crítico norte-americano acusara Oswald de ter produzido um livro repetitivo (e não apenas por causa da repetição de estrofes inteiras, muitas vezes na mesma página, mas por causa do tema – os obituários de personagens menores na Ilíada), que morria na página. O ensaio fechava com uma conclusão ambivalente, que não deixava entender se este leitor em particular apreciara o livro. Eu que naquela altura não pensaria na possibilidade de remover telhados de igrejas para intuir a força cósmica de um deus que enchesse da sua presença o céu ou nas possibilidades deixadas em aberto por reduzir poemas a um oitavo do seu enredo principal, prestei atenção antes à recitação de Oswald. Há qualquer coisa acerca do mito da cegueira de Homero que deve afinal traduzir o modo como durante a recitação do poema, em certo sentido, o poeta deixa de existir, é o corpo cego que desaparece na sua performance, seguindo apenas o labirinto da memória, de um ponto a outro, até à conclusão do que é declamado. Ouvindo Alice Oswald dizer Memorial ao vivo mais do que uma vez, conclui-se que as variações de performance para performance são mínimas, que há uma espécie de afastamento emocional entre o poeta e o poema, um tipo de racionalidade que permite que ela traga, incólume, a recitação ao seu fim. Ou não incólume, isso é uma ilusão da parte do espectador, confortavelmente sentado na sua cadeira, antes a salvo o suficiente para que o que é dito não o destrua completamente, para que se possa sobreviver apenas até à próxima estrofe, até ao próximo poema. Não há nenhum aedo na Ilíada, mas há alguns na Odisseia. Um deles é Demódoco, o poeta cego que canta na corte do rei Alcínoo, em Esquéria. Há qualquer coisa na performance de Alice Oswald que me faz pensar nesse poeta. Demódoco é experiente e hábil na sua arte e o que ele canta faz chorar Ulisses. A matéria do canto de Demódoco torna-se afinal em algo profundamente privado, um comentário profundamente ligado à vida de um indivíduo que errou de cidade em cidade e durante muitos anos não conseguiu regressar a casa. Como Ulisses, também Demódoco de algum modo depende da hospitalidade de Alcínoo.
Um longo fio invisível pode ser traçado entre a hospitalidade de Alcínoo e a das pequenas igrejas do Oxfordshire, que acolhem poetas para leituras de poemas cujo fundo religioso é pagão. Gostava de pensar que talvez seja algo como essa síntese idiossincrática que continua a trazer poetas até Oxford. The necessity of atheism está agora um pouco datado, embora Shelley na altura estivesse a começar uma revolução. Na cidade que se prepara para o inverno, esperamos que outros aprendizes comecem a trabalhar agora nos motivos da própria expulsão. Para lhe sobreviver, é preciso amar e odiar Oxford.
NOTA
1. Luís Miguel Nava, “As Escadas”, Jornal de Letras, 648, 16 de Agosto de 1995, p. 7.
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