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Na cidade de
Golgona Anghel
 
Pedro Eiras
 

 

 

1. Um mapa.

Um almoço com quarentonas New Age, anúncios da PT, o autocarro 738, uma auto-estrada, a avenida da minha liberdade de expressão. Baguetes da Casa das Sandes, os bancos do cinema King, o Beato, becos, bibliotecas nacionais, a Bobadela. Cabeleireiras, uma cabine telefónica, cafés da Baixa, um cadeirão do Ikea, cães vadios da minha rua, o Cais do Sodré, a caixa do Lidl, o Calvário, casinos, a Catedral do Pão, a cave do marquês, uma churrasqueira de Massamá, uma clínica privada na Pontinha, o comboio de Cascais, o complexo comercial da paciência, compras de Natal no Colombo, um contentor de rua. O Decathlon. O elevador do teu prédio, ementas de restaurantes, a entrada do Ginásio Clube Português, uma entrada do metro, o espaço comercial, uma esplanada, a esquina dos estudantes erasmus no Bairro Alto, a esquina do talho, a estação do Oriente, etiquetas de roupa, a Expo 98. A Fnac, a fossa das Marianas. Grandes metrópoles. Um helpdesk. A Igreja do bairro. Janelas embaciadas, o Jardim do Príncipe Real. O karting de Almeirim. O Largo do Calvário, Lena Construções Lda., a linda vista de Lisboa, uma loja de antiguidades, uma loja de souvenirs, a loja mais próxima, lojas de conveniência, luzes da marginal. O mercado, a mercearia gourmet do Cacém, o mosteiro de Odivelas, a Multiópticas, museus de cera. O néon publicitário da Boticário, nomes de lojas. O palco, um parque de estacionamento, uma pastelaria, o Pingo Doce, a piscina, projectos de obras públicas. A Rua Nova do Carmo. Uma sala de baile, uma sala de manicómio, a sala de microfilmes da Torre do Tombo, uma sala de partos, salas de espera, semáforos de fronteira, subúrbios da nossa imaginação, supermercados. Uma tasca de bruma, tasquinhas montadas antes do jogo, traseiras da minha casa, traseiras de um matadouro. Vitrinas.

Etc.

 

2. Um mapa.

Eis uma colagem de lugares de Lisboa e arredores (e por vezes outras cidades, não muitas), colhidos na poesia de Golgona Anghel. Conhecemos, reconhecemos a generalidade desses locais; alguns são ímpares – existe um único Bairro Alto, um único Cais do Sodré –, outros repetem-se a uma escala globalizada – todos os Ikeas e Boticários se assemelham. Lojas, cafés, esplanadas são uma paisagem familiar, pano de fundo banal das cidades. Materiais para um mapa, dir-se-ia. E contudo – duvido que se possa desenhar um mapa a partir da poesia de Golgona Anghel; aliás, gostaria de experimentar a seguinte tese: talvez esta poesia se construa sobre a impossibilidade de desenhar um mapa, por mais que convoque obsessivamente a cidade – e decerto por isso mesmo. Não há mapa, não pode haver mapa, escreve-se porque não se pode fazer o mapa.

Numa provocação célebre, Joyce afirma que, se Dublin desaparecesse, seria viável reconstituí-la até ao último pormenor, tal como era no dia 16 de Junho de 1904, a partir das indicações de Ulisses. O livro aspira a ser mapa da cidade, duplo do mundo: podemos denunciar o desnorte das personagens, se quisermos, mas a literatura apresenta-se como a cartografia exacta e exaustiva da paisagem urbana, conferindo sentido aos espaços e às deslocações, odisseia claustrofóbica, contudo fidedigna. Numa leitura também muito conhecida de A Educação Sentimental, Pierre Bourdieu (1992) mostra como o romance de Flaubert implica uma descrição sistemática das diversas zonas de Paris, explorando o comportamento das personagens a partir dos lugares que frequentam e a máquina narrativa a partir da vontade de descrever os espaços, esgotando-os. A Educação Sentimental delineia assim uma rede de agentes e de grupos sociais, um mapa dos lugares da cidade, e uma relação entre esses agentes e esses lugares. Dupla premissa, ou profissão de fé: existe uma lógica da cidade, capaz de ditar o comportamento dos citadinos; e o romance é capaz de a explorar exaustivamente.

Há decerto uma lógica (social, política, económica) da cidade de Lisboa na poesia de Golgona Anghel, e cada uma das muitas referências aos lugares sugere um fragmento dessa lógica. Mas talvez nem a soma de todos esses fragmentos chegue a constituir um mapa, e muito menos o mapa exaustivo com que sonham, explícita ou implicitamente, Joyce e Flaubert. Claro, seria preciso ressalvar desde já os programas próprios destes autores – o estudo científico completo no realismo, a ambição totalizante do modernismo – e também a diferença óbvia entre o projecto de narrativas com centenas de páginas e a brevidade dos poemas de Golgona Anghel, ou seja, o jogo da extensão descritiva versus a estratégia da sugestão e da elipse. Mas o essencial da minha hipótese permanece: se a literatura já aspirou a cartografar o mundo, a poesia de Golgona multiplica referências espaciais para dizer a impossibilidade da cartografia.

Claro que há locais, e nomes para designar esses locais. Mas um mapa não é apenas uma colagem de representações de sítios; considerarei que apenas existe mapa quando ele permite uma orientação, uma leitura do espaço, um sentido. Em Vim Porque me Pagavam, Golgona Anghel escreve: «Olho constantemente para o mapa / mas já não me lembro para onde queria ir» (2011: 51). Existe a cidade, existe literalmente um mapa da cidade, existe aquele/a que habita na cidade, mas falta uma razão, uma memória que dê sentido a esse habitar. Tudo é fragmentos de espaço, mas o espaço não faz sentido como um todo. Mesmo quando há mapa, mesmo quando há mapa «constantemente», nenhuma memória orienta ninguém. Na melhor das hipóteses, acrescenta a autora noutro poema, «Acreditar é ir andando» (61). Muito pouco, portanto: somente uma arte – frágil – da sobrevivência.

 

3. O mapa dos supérfluos.

Por que razão os espaços nunca formam um todo? Talvez porque não há sujeito que possa fazer sua a cidade, quando se é «dono de nadifúndios» (Anghel 2017: 59), quando se está «na fila dos sem destino» (2011: 10), quando se é despojado, indefeso, supérfluo. Ao lado da colagem de locais, seria preciso gizar outra lista, agora com os nomes daqueles que, estando dentro da cidade, não a habitam plenamente; vivem num fragmento de espaço, sempre na iminência de perderem o escasso sentido que os guia.

Os exemplos são inúmeros. Eis o fim de um poema de Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho:

Sou, em definitivo, este comediante de rua
que serve a desconhecidos,
em copos pequenos,
a medida certa da sua agonia.
Descobre sonhos
onde outros só encontram coelhos.
Hoje, por exemplo, quando tirou as luvas,
viu que lhe faltavam dedos. (2013: 18)

Claro que existe a rua, uma rua, esta rua desta cidade, aqui e agora. Mas como pode alguém tão frágil habitar aqui, quando é a desconhecidos que serve, como pode o supérfluo fazer o mapa de uma cidade que seja sua, quando mal tem consciência da sua própria incompletude? Na incerteza destes pequenos trabalhos, certa é apenas a agonia.

Que resta? «Trinta anos a roçar a cauda / em salas de espera e caixas de supermercado. / Meses e meses a afiar o ouvido ao ritmo de um certo rumor / nos bolsos, aquele ruído de fundo / que a miséria aprendeu a trautear nos becos: / as tripas, os trocos», lê-se em Nadar na Piscina dos Pequenos (Anghel 2017: 51). Tudo aqui é restos e incapacidade: como afirmar uma habitação da cidade quando se está dependente de trocos no fundo dos bolsos, como ter um corpo inteiro se estão em risco as próprias tripas? Ou ainda: como transformar em vida esses «Trinta anos a roçar a cauda / em salas de espera», como transformar em ruas os becos, em voz o ruído de fundo? Lisboa é uma unreal city, não por ser imaterial, fantasmagórica, mas porque a experiência fragilizada do sujeito não consegue tornar essa matéria utilizável; a cidade está condenada a ser resto, frágeis expedientes para assegurar a sobrevivência de cada dia. Nestas circunstâncias, qualquer gesto de insurreição está condenado ao fracasso:

Vocês podem até não concordar com tudo isto,
reclamar os dentes partidos,
pedir pomada para as cicatrizes.
Sentem-se, talvez, ofendidos.
Acham que perdemos o decoro,
que levantámos a voz,
não foi?
[...]
Agora, não se iludam,
[...]
Por uma questão de hábito, entende-se,
ou talvez seja o feitio,
teremos sempre o olhar triste,
os pés descalços,
a mão estendida.
Deixem-nos, ao menos,
vender-vos uma boa história. (2013: 58-59)

Sim, pode haver revolta: dentes partidos, cicatrizes, ofendidos, uma alegada perda do decoro. Mas esta insubmissão, se chega a acontecer, desfaz-se novamente em disforia: «o olhar triste, / os pés descalços, / a mão estendida», novamente os trocos, e a solução desesperada – «Deixem-nos, ao menos, / vender-vos uma boa história».

Por que motivo a revolta decai em nova submissão? Golgona Anghel sugere, com ironia: «Por uma questão de hábito, entende-se, / ou talvez seja o feitio». Hábito, feitio, um estranho destino malévolo – ou talvez uma lógica calculada das cidades de hoje. Zygmunt Bauman descreve a emergência de um novo tipo de «classes perigosas» na «modernidade líquida» actual:

As classes perigosas originárias eram formadas por uma população excedentária, temporariamente excluída e ainda por integrar, que se vira despojada de qualquer função útil pelo ritmo do progresso económico e acabara por ficar privada de toda a protecção através do processo que desintegrava aceleradamente todas as anteriores redes de laços sociais. As novas classes perigosas, por outro lado, são as que se consideram como não aptas para a integração, por isso sendo declaradas inassimiláveis, já que não parece concebível qualquer função que pudessem vir a desempenhar depois de reabilitadas. Não são apenas excedentárias, mas também supérfluas. (2005: 18-19)

O «hábito» e o «feitio» daqueles que abandonam a insurreição podem ser explicados, não por um qualquer destino misterioso, mas pela lógica da produção destas novas «classes perigosas», isto é, inintegráveis, supérfluas. Com o progresso da técnica, o desaparecimento de diversas profissões e a explosão populacional, chega-se a um estado paradoxal: a incerteza torna-se um estado definitivo. O desemprego deixa de ser uma realidade temporária, segundo Bauman, para se tornar uma condição crónica. Em suma, a cidade não é apenas o local onde se encontram os supérfluos: a cidade é aquilo que inventa os supérfluos e os mantém nessa condição, contando trocos e, quando muito, contando uma boa história a quem passa – decerto aos que têm emprego. Com cinismo calculado, ou desespero, um poema conclui: «Já dizia a tia Ermelinda Freitas: / o melhor, meu filho, é ficar quieto. / Encher o copo / e aguardar que o mundo dê mais uma volta, / sem que a roda nos pise os pés» (Anghel 2017: 67).

 

4. O mapa dos precários.

A cidade produz os supérfluos. Mas até os integrados vivem num regime de precariedade que os ameaça com o espectro de uma expulsão – económica, social, política. Enquanto o desemprego de uma camada da população tende para se tornar crónico, a cidadania revela-se, ao invés, frágil, incerta, temporária, e tem de ser constantemente reivindicada.

Cito, com alguma extensão, o início de um poema de Crematório Sentimental, primeiro livro de poesia de Golgona Anghel:

MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA

NOTIFICAÇÃO

Aos dias 23 do mês de Novembro do ano dois mil e três, nesta cidade de Lisboa, e neste Posto de Atendimento da «Penha da França», sito na Av. Coronel Eduardo Galhardo, nº 18-A, eu Franz Kafka, Inspector-Adjunto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Notifico a cidadã Golgona Anghel, titular do Cartão Diplomático 484/00, de que o sentido provável da decisão que irá recair sobre o pedido de prorrogação de Autorização de Permanência formulado em 29 de Setembro de dois mil e três, é de INDEFERIMENTO, por se encontrar em situação enquadrável no previsto no nº 8 alínea b) do Artº 53º do DL 244/98 de 08AGO, com as alterações introduzidas pelo DL 34/2003 de 25FEV, pelo que no prazo de 10 dias, querendo, poderá dizer o que se lhe oferecer sobre a mesma, em documento escrito a apresentar neste Posto de Atendimento.

Para efeitos de apresentação de eventuais alegações, informa-se o público interessado em naufrágios de frangos congelados nas circunvoluções dos bovinos de corte criados em explorações clandestinas no Parque Natural da Ria Formosa, que o processo poderá ser consultado nas instalações deste Posto de Atendimento, na morada supra referida, durante o horário de expediente. Para os que estão habituados a tomar o café sem açúcar como Neruda naquela peça de teatro de Almada; lembras-te? Estava a fazer cara de parva a inventar italianos em Bruxelas e tu a pensar sempre na tua gaja de Lagos. «Tinha olhos verdes e era virgem.» Estou-me nas tintas, meu f.d.m., dos teus namoricos de verão. (2007: 51)

A citação já é extensa, mas o poema ainda continua, torrencial – regressando por vezes à linguagem do documento burocrático, cruzando-a frequentemente com um muito livre stream of consciousness: por um lado, é um objet trouvé impuro, com alterações episódicas (veja-se o surgimento de Kafka como Inspector-Adjunto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras); por outro, a emergência de um discurso furioso, elíptico, fragmentado, disperso entre memórias por aplacar e um non sense provocador – «informa-se o público interessado em naufrágios de frangos congelados nas circunvoluções dos bovinos de corte criados em explorações clandestinas no Parque Natural da Ria Formosa»… Ora, a violência destas referências caóticas nunca se esgota em si própria: mesmo o non sense mais inesperado faz parte da resposta emotiva, desesperada, de quem vê ameaçada a sua permanência em Portugal. À objectividade clínica do documento oficial responde a sujectividade furiosa da «cidadã Golgona Anghel», e reside aqui o sense mais profundo – e doloroso.

O Inspector-Adjunto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras recebe um nome revelador – Franz Kafka; a notificação burocrática é «kafkiana». Mas a destinatária da notificação chama-se «Golgona Anghel», que é também o nome da autora do livro Crematório Sentimental. Os leitores não podem deixar de ler este poema (poema em prosa, colagem, objet trouvé com intervenções, torrencial fluxo de consciência, protesto, texto sem género, fora das classificações, suspeito e insurrecto, supérfluo e precário?) a partir de um pacto referencial, identificando autora e personagem, considerando que a própria poetisa Golgona Anghel, nascida na Roménia, recebeu uma notificação, esta notificação – «eu Franz Kafka [...], NOTOFICO a cidadã Golgona Anghel, titular do Cartão Diplomático 484/00, de que», etc. –, documento autêntico, quase intacto, referencial, como que real, quase.

Não voltaremos a encontrar o nome «Golgona Anghel» nos poemas de Golgona Anghel. Mas decerto os leitores não conseguem deixar de ceder à tentação de identificar a autora – de quem sabem que é académica, investigadora, bolseira – com o sujeito de diversos poemas. Por exemplo: «No horizonte lento mas seguro de uma utopia light, / passo o dia a vender o meu terceiro mundo / em colóquios e palestras internacionais» (2011: 20). Ou: «Vejo-me a mim, na fila das finanças, / um naco de carne agarrado a um recibo verde. / Estado: fora do prazo. / Origem: descontrolada» (2017: 46). Ou ainda:

Na terça, voltei a ler Alguns livros reunidos
de Joaquim Manuel Magalhães.
[...]
Havia lá uma parte em que falava mal dos bolseiros.
Qualquer coisa sobre a necessidade
de repatriar esses dejectos.
Fechei o livro e fiquei à espera
que a vergonha de estar viva
devorasse o meu ridiculum vitae
de baixo para cima
desde a biqueira dos sapatos
até ao meu último nome. (2011: 61)

Trata-se certamente do poema «7» da secção «Teorias literárias», incluída no livro Vestígios (originalmente publicado em 1977) e depois em Alguns Livros Reunidos (de 1987): uma sátira feroz contra investigadores que o poema descreve como oportunistas, calculistas, inúteis – «O projecto em fundilho é a difusão / duma poesia tão! injustamente esquecida. / Quer dizer, bolsa de estudo com refeições pagas, / livros à borla que todos lhes mandam / e lá na terra mais uma entrada no currículo / de terceira» (Magalhães 1987: 122). Em rigor, este violento poema de escárnio e mal-dizer não contém palavras como «repatriar» ou «dejectos»; a paráfrase de Golgona Anghel responde à sátira com uma sátira da sátira – ou torna explícito o que sentiu implícito em Joaquim Manuel Magalhães. Mas o essencial, a meu ver, é a introdução do ponto de vista daquela que se sente aqui satirizada: a bolseira precária. Contra o sarcasmo virulento, então, Golgona Anghel responde com ironia magoada – o irónico auto-apagamento de alguém que não pode ter lugar (quanto mais mapa).

Auto-censura, aniquilamento, «de baixo para cima / desde a biqueira dos sapatos / até ao meu último nome», invalidação do curriculum em ridiculum, precariedade: «Dizes que é apenas uma questão de tempo, / que só foste renovar o contrato para não ficares assim com / o pé no vazio» (Anghel 2011: 73).

 

5. Como fazer um mapa.

Na verdade, todas as condições estão reunidas para que os supérfluos e os precários possam reivindicar uma experiência de pertença ao espaço que habitam. Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho di-lo claramente: «A batalha é nossa, / já alugámos as trincheiras», antes de concluir: «mas custa tanto tirar os pijamas» (2013: 19). Esta denúncia do comodismo repete-se, como que traumaticamente, em inúmeros poemas. No mesmo livro – «Algo envelhecidos, / debaixo dos nossos trajes de revolta, / trocámos entretanto a história pelo panfleto. / Passámos todos da erudição ao aforismo» (60), em Vim Porque me Pagavam – «O que me preocupa – e isso, sim, pode ser relevante / para o fim da história – é saber / quando é que me transformei, / eu que era uma loba solitária, / neste caniche de apartamento que vos fala agora?» (2011: 13), ou em Nadar na Piscina dos Pequenos:

Há regressos que nos tiram pedaços do corpo,
em troca de um lugar para sentar-nos, embora
os dissidentes não se sentem nunca,
por mais baratos que nos vendam os sofás.
Não se sentam nem se cansam.
Gastamo-nos apenas,
como meros bocados de sabão
onde os nossos pais cravaram
as suas lâminas de barbear.
(2017: 20)

Não pode haver mapa, porque as camas e os sofás confinam este sujeito colectivo, geracional, ao interior de um apartamento. As trincheiras não chegam a ser ocupadas – e é logo mau sinal estarem disponíveis para aluguer.

Conhecemos esta narrativa de decadência, com a geração dos pais apta para um combate, e a dos filhos cansada e acomodada. No registo mítico, ela é tão antiga quanto a descrição de cinco idades do mundo em Hesíodo. Muito mais perto de nós, e numa cosmovisão mais secular, Bernardo Soares lamenta-se repetidamente de nem pertencer a uma geração afirmativa nem iconoclasta, mas a um interlúdio disfórico, incapaz: «Quando nasceu a geração a que pertenço encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse cérebro, e ao mesmo tempo coração. (...) Ébrias de uma coisa incerta, a que chamaram “positividade”, essas gerações criticaram toda a moral [...] / Mas o criticismo frustre dos nossos pais, se nos legou a impossibilidade de ser cristão, não nos legou o contentamento com que a tivéssemos” (Pessoa/Soares 1998: 187-188). Mítica ou secular, transcendental ou imanente, esta narrativa afirma a incapacidade imediata – por seu turno necessária ou contingente, mas sempre inquestionável. A herança das eras anteriores continua próxima, as diversas escolas do pensamento permanecem latentes, mas os anões não sobem aos ombros dos gigantes.

E contudo – esse mesmo diagnóstico não será uma forma de protesto? Enquanto Bernardo Soares assume a falência da sua vida numa cadeia de negativas (nem… nem…), glosando vez após vez a cristalização do seu destino (decerto com alguma volúpia masoquista), existe na poesia de Golgona Anghel uma contínua fúria contra aquilo mesmo que constata. Na verdade, ambas as escritas são performativas; mas enquanto Soares constrói o seu impasse num amontoar de argumentos definitivos, Golgona inventa um protesto no mesmo instante em que parece descrever o inelutável. Mesmo quando se trata de fazer uma autópsia íntima:

Vim porque me pagavam,
e eu queria comprar o futuro a prestações.

Vim porque me falaram de apanhar cerejas
ou de armas de destruição em massa.
Mas só encontrei cucos e mexericos de feira,
metralhadoras de plástico, coelhinhos de Páscoa e pulseiras
de lata.

A bordo, alguém falou de justiça
(não, não era o Marx).
A bordo, falavam também de liberdade.
[...]
Alguém se atreve ainda a falar de posteridade?
Eu só penso em como regressar a casa;
e que bonito me fica a esperança
enquanto apresento em directo
a autópsia da minha glória. (Anghel 2011: 59-60)

Já conhecemos este diagnóstico, a precariedade de quem só pode «comprar o futuro a prestações». E decerto os mexericos de feira não se convertem em cerejas, nem as metralhadoras de plástico condizem com a prometida destruição em massa: a esse nível, a realidade dos factos é efectivamente disfórica; justiça, posteridade, esperança são apenas words, words, words. O que resta então? Precisamente, restam apenas palavras. Mas há que inverter a ordem desta frase, dizer antes: as palavras restam, resistem, revoltam-se contra aquilo que dizem.

Talvez seja pouco? Talvez seja o essencial.

 

 

 

 

Bibliografia

ANGHEL, Golgona (2007), Crematório Sentimental. Guia de bem-querer, Famalicão, Quasi.
_______(2011), Vim Porque me Pagavam; ed. ut.: 2.ª ed., Lisboa, Mariposa Azual, 2011.
_______(2013), Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho, Porto, Assírio & Alvim.
_______(2017), Nadar na Piscina dos Pequenos, Porto, Assírio & Alvim.

BAUMAN, Zygmunt (2005), Trust and Fear in the Cities – Seeking shelter in Pandora’s box or Fear, security, and the city living with strangers; ed. ut.: Confiança e Medo na Cidade, Lisboa, Relógio d’Água, 2006.

BOURDIEU, (1992), Les Règles de l’Art; ed. ut.: As Regras da Arte. Génese e estrutura do campo literário, Lisboa, Presença, 1996.

MAGALHÃES, Joaquim Manuel (1987), Alguns Livros Reunidos, Lisboa, Contexto.

PESSOA, Fernando / SOARES, Bernardo (1998), Livro do Desassossego. Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, Lisboa, Assírio & Alvim.

 
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