Eis um livro que enlaça a crítica a partir do título, estabelecendo ao mesmo tempo uma continuidade orgânica com o livro anterior. Tardio foi o que a crítica chamou ao primeiro livro da autora, Cinza (2013). É um termo que alberga ambiguidade, está entre a constatação objetiva de uma determinada colocação na linha do tempo e a apreciação negativa de uma não-conformidade com o tempo próprio em que deveríamos habitar cada um dos segmentos dessa linha do tempo. Neste caso, tardio para ser primeira obra de poesia. Portanto, à lição moderna da não biografia dos autores sobrepôs-se a existência omnívora do star system, todo bem escalonado entre debutantes, consistentes no percurso e laureados. Mas seria também tardio para ser obra de poesia, simplesmente obra de poesia? E logo uma obra que se acolhia sob um título como Cinza? Mas deixemos isso. Ou melhor, agradeçamos isso como uma espécie de variação menor da felix culpa, porque sem querer a crítica deu a Rosa Oliveira um título magnífico e um operador poderoso para a efabulação que a estrutura do livro permite.
A epígrafe de Relação para uma academia, de Kafka, dá o tom: “Foi uma honra que me concederam ao pedirem-me que apresentasse à Academia a relação da minha vida anterior de símio.” A nossa vida de símio somos nós vistos a partir do nosso próprio estranhamento, ou a nossa animalidade mascarada mas afinal transparente, sempre para cá das grandes palavras e dos grandes sentimentos, sejam de alegria ou de tristeza, de sublime ou de horror. E quem o sabe percorre um certo tipo de ironia fria, cruel, mas que não é exibicionista, isto é, não está contente do seu próprio poder, nem é agressiva, porque tudo o que há para dizer contra o mundo ou contra as coisas do mundo começa sempre ou quase sempre por ser dito primeiro contra si mesmo. A ironia fria e cruel é um trabalho de desilusão, e o trabalho de desilusão que vem da ironia fria e cruel (e não do desgosto sentimental ou ideológico, que é respeitável e necessário, mas é apenas o primeiro lance deste fim de partida) é já um trabalho de compaixão, essa compaixão que não é de pena ou de piedade mas de ir com a paixão do outro, do outro do mundo que nos calhou e do outro que somos nós próprios enquanto nossa companhia o seu tanto insuportável. Esta compaixão, está bem de ver, só aquilo que é tardio a pode dar. E a verdade disto talvez se possa medir pelo facto de a ambiguidade do tardio se aplicar aqui nos seus vários sentidos, ela é realmente a condição de possibilidade dessa compaixão: porque a compaixão só se atinge tarde na nossa existência, pressupõe gastar do tempo e gastarmo-nos às mãos do tempo (aprendizagem, desaprendizagem, não-saber isento de medo e de esperança); e, sobretudo, porque a compaixão vem sempre fora de horas, desencontrada do ritmo do mundo, é a forma benigna de nos irmos desenlaçando dele e de nós próprios, sem ilusões de legado e sem fúrias destrutivas ou niilistas. Mas não percamos o foco, isto é, não percamos o tom desta poesia: a compaixão alimenta-se aqui de uma ironia fria e cruel, trabalho de desilusão.
O primeiro andamento deste livro tem por título Yonville. É a pequena cidade de província da Bovary, tão igual a toda a nossa província, essa sim persistentemente tardia, “insuportável / como toda a paz campestre” (p. 24). Bovary continua lá como contra-exemplo, é aquilo de que foge Miss Brodie ou Gena Rowlands, o destino empírico é outro, mas que a sorte seja verdadeiramente diferente já é mais duvidoso. São referências cinéfilas de uma época, também as há teóricas, bem como aquelas outras que permitem entrever ambiências familiares. Mas são todos quadros que se furtam à clareza da autobiografia ou sequer de uma mimesis cautelosa, embora componham sem equívoco o romance de formação que aqui é possível. A esse título, “canibalesca” é bem o poema de um corpo crescendo desde sempre no seu desconforto animal e metafísico, ou de uma outra maneira, é o poema em que se constata que toda a formação consiste em aprender a estranheza intrínseca de tudo, esses objetos básicos da sobrevivência que são partes de um corpo a que temos de chamar nosso, essas palavras pesadas, quiçá mortas, de que somos, por condição, uma espécie de túmulo involuntário: “há mil anos que tento perceber / como funcionam os objectos / básicos da sobrevivência / coisas como pernas braços pescoço / há mil anos que palavras pesadas / definitivas / se depositaram no meu interior / palavras que atravessam muros / impassíveis no seu granito obstinado” (p. 23).
Yonville é o que se deixa para trás, o lugar de onde se foge. Visto de um tempo tardio, esse lugar é propício à mitificação ou até à nostalgia lúcida do que nunca realmente esse lugar foi. Mas não é esse o tom destes poemas. Sirva de exemplo o poema que fecha este primeiro andamento. O que há de tardio nesses versos é essa consciência fria e cruel de uma perda que nos é imposta tanto pelo tempo que passa quanto pela nossa pressa em cavalgá-lo. A ironia é subjacente, e decorre toda do título: “always late, toujours en retard”. São ideias feitas, para nos mantermos em alusão flaubertiana. E as ideias feitas não compõem apenas a estupidez, compõem também a consciência auto-irónica de que aquilo que nos poderia aniquilar ou plenamente preencher está condenado a ser feito, no sentido de ser concluído, esgotar-se – e deixar-nos de novo a braços com o trânsito pelo tempo. Ironia fria e cruel, pois, destes dois magníficos versos que encerram essa espécie de infância e juventude anímica que aqui se chama Yonville: “lamento, gente toda desaparecida / tinha tanta pressa que já não vou a tempo” (p. 35).
O segundo andamento, “meteóricas e sentimentais”, leva-nos sobretudo para as ambiências da oficina poética entendida na sua dimensão alargada, que é aliás a sua verdadeira dimensão desde o modernismo (para não dizer desde sempre, mas essa é outra discussão). Ou seja, os motivos, os temas, as condições da poesia, ou desta poesia em particular; mas também a teoria da interpretação ou da leitura em sentido lato; e ainda aquilo que nas leituras de outras obras se pode constituir como novos motivos para esta poesia. A distância introduzida pelo tardio permite que tudo isto se veja como uma espécie de marcos miliares, essas coisas inquestionáveis e relativamente precisas na sua significação para o olhar do historiador, mas o seu tanto enigmáticas, e no limite descartáveis, para o olhar do leigo que habita sobretudo o presente. New critics, Bakhtin, a descrição à luz de Wittgenstein, a problemática do panfleto, as pobres figuras de estilo alinhadas e submissas – reconhecemos a travessia do campo teórico, e quanto uma certa idade da poesia foi culturalista e meta poética. Mas na verdade não precisamos de sabê-lo profundamente ou com todo o detalhe, porque o andamento dos poemas abandona tudo isso para o sem-fundo da história, guarda apenas os sinais da passagem. De algum modo, as referências culturais deveriam ser aqui olhadas como sinais da mesma ordem privada, digamos assim, que os nomes entre parênteses que encimam alguns poemas: indiciam certamente dedicatórias ou motivos cifrados, mas pessoas e factos são mantidos na sombra e não se pretende que entrem na construção do sentido poético. Pressupõe-se uma vida pessoal, mas não se põe a biografia escancarada no poema. O que sim, se escancara, é a ambiguidade de toda a escrita, sucintamente lavrada em “menos-com-menos-dá-mais”: “muitas vezes escrevi para não endoidecer / a maior parte do tempo em que não escrevi / foi para não endoidecer” (p. 42). Na sua dimensão epigramática, estes versos funcionam bem como uma dobradiça que permite abrir para qualquer um dos lados sem resistência ou equívoco. O livro guarda esse livre-trânsito como uma lição obviamente tardia, a de que a poesia não é intrinsecamente coisa nenhuma, salvação ou maldição, nem se legitima por si mesma. Usá-la ou não é um cálculo existencial resolvido momento a momento, nesse combate com a voz subterrânea – a referência parte de Dostoievski e do niilismo do último homem para chegar à mais insuportável das descobertas freudianas: “nós / bem nutridos / lavados / saudáveis / cultos / tivemos de dar razão a freud / era apenas uma fina camada / pronta a ser perfurada // «mais tarde» não existe” (p. 48). Um radical político desta natureza não tem que ser estranho a um lugar como Yonville nem a versos meteóricos e sentimentais que dizem a variada vida que apesar de tudo lá vai existindo, mas dá bem a medida de quão frio e cruel é o trabalho de desilusão quando chega a consumar-se como olhar e fala lúcida.
Em todo o caso, esta barbárie latente não deixa de coexistir com processos históricos em que algumas mudanças se vão operando, e disso nos fala, entre o oblíquo e o direto, a última secção do livro, “Os rapazes não vão gostar”. Da escalpelização da “página em branco / essa conversa androcêntrica” (p. 89) ao “inevitável poema sobre marylin”, essa que “gostava de esvaziar a tripa / [...] / talvez quisesse preparar o traseiro / para presidentes / senadores, capatazes / sem contar com dramaturgos. / enfim, rapazes...” (p. 78), corre com sarcasmo uma consciência feminista que nunca se torna épica e muito menos fala de um novo mestre. De resto, como talvez se possa inferir do poema que dá o título à secção, embora sendo coisa séria – e como não o seria? –, isto de rapazes e raparigas não será senão a pré-história da conversa entre homens e mulheres, a que se seguirá, talvez, a simples conversa entre humanos. Claro que não se chega lá por decreto nem por destino teleológico, e por isso convém que raparigas outrora “em crise amorosa” sejam agora “sem crise amorosa”, e a queixa em “sons imprestáveis” se torne “eu lantejoulando” (p. 88). Os rapazes deixam de ser o centro ou a referência maior, como tem de ser e a passagem do tempo ensina, mas as lantejoulas são como essa pessoana “bandeira desfraldada do sentido nenhum da vida”: com ou sem crise amorosa, os cigarros continuam “fumados até à medula”, essa é a medida do reconhecimento de que o trabalho de desilusão se vai cumprindo.
O que assoma pois em Tardio é uma final e discreta consciência da falha do mundo. Pode ser um desajuste no tempo, como nesse espantoso “o poeta no ginásio” em que se recorda O’Neill, em pleno PREC e em plena Yonville, “a dar voltas tremendas / ao discurso / para justificar a sua existência” enquanto poeta (p. 100). Pode ser o ajuste do tempo, “diz o meu filho que vai partir / vai partir hoje / e parte todos os dias sempre há dezoito anos” (p. 106). Pode ser a vaga hipótese de uma alegoria: “as pessoas não deveriam estar lá fora / no mundo / a fazer qualquer coisa?” (p. 86). Ou então, e nestes casos é sempre o mais certo, pode ser a alucinada exatidão do real: “posso agora assistir melhor / ver como cai o pó / essa preocupação inverosímil / um pouco tonta / quando tudo se esboroa / sei agora como cai / não sei como é estar vivo” (p. 107). Enfim, se eu fosse crítico diagnosticava tardia metafísica ateológica. Ou compaixão. E como nada disto serve para próximo título, haveria algumas probabilidades de poder ter acertado um pouco.