A recente reedição de Obra Breve de Fiama Hasse Pais Brandão é um acontecimento editorial da maior importância. Há muito esgotadas as anteriores edições, têm agora os leitores de poesia a possibilidade de reler a quase totalidade da sua obra poética publicada e de repensar um dos percursos mais densos e inovadores da literatura portuguesa contemporânea, iniciado em 1957 com Em Cada Pedra Um Voo Imóvel, a que chama «recitações dramáticas» e que, pela sua natureza não foi incluído no presente volume, que se inicia com a plaquette intitulada Morfismos, do conjunto designado por Poesia 61, que, embora fazendo parte de uma publicação colectiva, expressa uma voz autónoma, com projecto próprio, como sucede, de resto, com os quatro outros colaboradores, embora tendo todos como denominador comum a radical valorização da palavra em si mesma, como material do trabalho poético, em detrimento de um entendimento que, alheado da espessura do significante, sobrepusesse a tudo a vertente comunicativa, entendida de modo convencional.
Esta valorização da palavra como verdadeiro reduto do pensar poético está no centro da poesia de Fiama que, entre 1957 e 2002, publicou mais de vinte livros de poesia, várias peças de teatro, ensaios e textos críticos. A poesia reunida em Obra Breve é introduzida por um excelente prefácio de Eduardo Lourenço, que evidencia os aspectos essenciais da atitude poética de Fiama. Numa recensão que se pretende não seja demasiado extensa, é impossível analisar cada um dos livros que constituem a obra de uma das maiores poetas portuguesas da segunda metade do século XX, pelo que a abordagem ganha em ser feita genericamente, até porque a coerência estrutural de tal obra permite fazê-lo.
A poesia de Fiama é uma poesia de uma intensa serenidade, no sentido em que a representação das coisas procura uma neutralidade que permita ir bem ao fundo da relação que o poema sempre estabelece (de modos vários e através de infinitos caminhos) com o que procura abordar, sem que haja desadequação entre o eu e a realidade, como acontecia em algumas experiências poéticas anteriores, subsidiárias de estéticas de aproximação directa, que, pela representação às vezes hiperbólica, ideologicamente condicionada, acabavam por subverter o equilíbrio entre o ser e a consciência, como sucedeu com alguma poesia do neo-realismo e suas margens e com algumas propostas que lato sensu se poderão incluir numa posteridade romântica, por afirmarem o pensamento emotivo como forma de aproximação do real, fazendo com que o sentimento ardente dominasse a progressão subjectiva da expressão poética. Não quero com isto afastar da poesia de Fiama a permanência de vislumbres emotivos que discretamente ela tem, o que penso é que esses breves rasgos surgem sempre na aproximação pensada do texto ao objecto de que se ocupa, e na medida em que essa aproximação é uma aposta que envolve o poeta na sua pulsação ôntica, logo flutuando no tempo da sua biografia. Poesia e vida não podem deixar de andar intimamente ligadas – e andam, no caso de Fiama, não obstante o seu tão apontado textualismo – só que, como em toda a intimidade, vivem nela momentos de aproximação e de afastamento, de enlace e desenlace, e é isso mesmo que acentua a espessura da linguagem poética, contrariamente à opinião muito divulgada de hermetismo como vontade de reclusão que, quer no caso de Fiama, quer no caso de Herberto Helder, não partilho de modo algum. De facto, o que sucede aqui com a palavra poética é que ela é criada e não usada (reservando-se o uso para a linguagem vulgar [1]) e nessa criação está envolvido todo o ser do poeta. É certo que sempre houve poetas que se serviram das palavras com um propósito meramente comunicacional, mas não é disso que falo. Falo da palavra poética enquanto momento fundacional, o que evidentemente não lhe retira substância apreensível, implica é estratégias posicionais diferentes por parte do leitor. Para tentar clarificar esta complexa relação do texto poético, valorizador do peso específico da palavra com os seus referentes, socorro-me de María Zambrano que fala de um «[…] tiempo trascendente que puede contarse en una relación análoga a la que la palabra, trascendente hacer poético, guarda con la palabra comunicante. No se excluyen, solo se separan para unirse incesantemente. Mas la palabra poética – trascendente, al igual que el tiempo órbita – preside la vida del ombre, uniendo así su ser con su vida. [2]» Na poesia de Fiama, como sucede na poesia de alguns dos seus companheiros da Poesia 61, mais particularmente em Gastão Cruz e Luiza Neto Jorge, a palavra poética, por resultar de um contínuo processo de ida e volta à realidade, que a torna mais viva na sua aparência (e as duas palavra vêm em itálico, para acentuar quer a intensidade e especificidade da palavra poética, quer o seu modo de se dar como algo que se destaca de um escuro difuso, sem contornos, isto é, como aparição ou emergência epifânica) identifica-se com a imagem que com ela vibra, numa sobreposição de contornos que convocam a percepção, a memória e a imaginação: «Sobrepõem-se as evocações/ livrescas/ na pupila da memória./ Andorinhas em curvas negras./ Excesso de gritos/ na sensação/ não-literária. Pura ideia/ esvoaçante desde outra memória/também minha. Ar negro. [3]» escreve Fiama num poema de Âmago II (Nova Natureza). A ideia de des-subjectivação da poesia tem um alcance meramente relativizante, não pretende mais do que chamar a atenção para o facto de a poesia ser antes de tudo palavra que se pensa pela re-criação, como a pedra ou o mármore de que se retira a escultura que, por sê-lo, não deixa de ser pedra ou mármore, ou a materialidade das tintas com que se configurará uma pintura que terá múltiplos significados ou, pelo menos, causará variedades de impressões em quem a olhar. Semelhantemente, as palavras na poesia, enquanto significantes, vivem permanentemente de apelos, são possuídas por ecos e reflexos próprios e alheios, numa intricada teia de «laços de família» inter e intrasubjectivos.
Da revisitação dos poemas deste livro, escritos num arco de tempo de cerca de quarenta anos, sobressai o projecto de um dizer novo, de repensar o dizer, redesenhando o pensamento e a arte, reafirmando a realidade pela actualização da leitura poética, da prolação de imagens inusitadas, por vezes surrealizantes, que obrigam o leitor a desvios e a atalhos para se aproximar dos textos, face a face com as suas configurações surpreendentes. Mas é precisamente aqui que a imensa originalidade de Fiama se revela, isto é, mostrando que não há verdadeiramente poesia sem surpresa, sem sacrifício de hábitos e expectativas, já que o poético se reinventa em cada poema e em cada poema se questiona uma vez mais o que seja a Poesia. É pois neste permanente esforço de dizer de novo, dizendo o novo, que creio se deverá abordar a poesia da autora de Barcas Novas. E não mencionei este livro de 1967 por acaso, mas pelo que ele significou de novidade para a minha geração, pelo que ele tem de compromisso com a memória colectiva e as vicissitudes de um tempo de aspereza, sem renunciar a um dizer distinto, a uma abordagem diferente mas coerente que, na sua novidade, só avivou e deu maior nitidez àquilo de que falava, mostrando bem que as opções de escrita operam novas focagens da realidade. O adjectivo do título deste quarto livro de Fiama, condensa numa palavra todo o auto-consciente e deliberado programa de perspectivação que hoje nos aparece com uma impressionante nitidez na sua obra, anunciando já, naqueles conturbados anos finais da década de sessenta, uma extensa e intensa viagem de revisitação de lugares literários que prosseguiria nas décadas subsequentes. Barcas Novas enuncia claramente este princípio, ao qual Fiama sempre se mostrou fiel, o de que as respostas que a poesia eventualmente der a uma circunstância determinada são apenas respostas poéticas, e não passam disso. A única intervenção da poesia é a sua necessidade, o facto de irremediavelmente existir enquanto o homem não desaparecer do universo. As palavras na poesia serão palavras que transmitem alguma coisa, mas são, antes de tudo, palavras, isto é, entidades contraditórias, esguias, sensíveis e fortes, complexas e simples ao mesmo tempo. Talvez por isso não exista verdadeiramente poesia de circunstância, porque toda a poesia é afinal de circunstância. Fiama afirma-o com aquela concisão e poder de síntese que caracteriza a sua escrita: «Em momento de dureza/ acaso ardor/o homem que os trabalha/ pensa/ porque o exemplo sempre/ é o modo como atalha/ a resistência [4]»
Fiama ensina-nos que escrever poesia é partir do todo sedimentado e contraditório que é o nosso espaço mental, para, no contacto com o mundo em que vivemos, lhe subtrairmos imagens e as manipularmos à nossa maneira, gerando incendiários efeitos de surpresa, um pouco como a personagem circense do homem que sopra labaredas a partir de um tição incandescente, o que bem transmite a dupla natureza da poesia, o seu lado lúdico, exuberante por vezes, a sua liberdade e metamorfoses por que passa («Devagar a tesoura poda o arbusto/ tornando-o de realidade em desejo/ de forma. [5]»), mas também a sua natureza perigosa: a poesia queima, a poesia é fortemente destrutiva. Gastão Cruz, num ensaio sobre Fiama, fala do efeito do «conceito totalizador da palavra poética enquanto imagem [6]» conferindo ao poema um estatuto a que eu chamaria caleidoscópico, no sentido em que escrever é partir de um caos de imagens que se atropelam, que vibram simultaneamente no pensamento, na memória e nas sensações do momento, e procurar fixar algumas num todo que as religue com coerência; mas coerência que não é a da lógica formal, a que obedece a linguagem estreitamente comunicacional, mas a da lógica poética, também ela com regras e valores que o próprio poema tem implícitos, quer pelos códigos a que se associa, quer pelos que constrói na sua vertigem subversiva. Fiama, num poema de Três Rostos (1989), fala em «diminuir a área da imagem», pensando certamente nesse movimento que do originário todo impulsionador, permanente e neutro (o ar negro? a área branca?), assume formas analíticas, para se consubstanciar na imagem de síntese final que as palavras do poema procuram através da cegueira criadora.
Subjacente a esta poesia está uma exortação pedagógica, na medida em que a sua leitura inteligente implica desacomodação por parte do leitor, que deve renunciar aos hábitos subjugados por uma mímesis redutora. Há que participar activamente na construção de significações, mas sempre dentro da malha por vezes áspera e resistente das palavras, que provocam o imaginismo próprio do poema. A manipulação milimétrica das palavras é o cerne desta poesia, que deixa muitas vezes à mostra, deliberadamente, a ossatura do esforço criador, questionando a ideia de embelezamento que percorreu tanta poesia contemporânea de Fiama, vitimada por aquilo a que Alexandre Pinheiro Torres chamou «o preconceito do poético [7]», preconceito que chega por vezes ao ridículo de considerar que há palavras mais poéticas do que outras. Ora, na poesia de Fiama, o que importa é o efeito irradiante da palavra, isto é a sua vibração imagística no contexto do poema, por forma a servir o que se poderia chamar uma paisagem poética, expressão que, naturalmente nada tem de pictórico no sentido da representação especular de uma realidade transcendente, mas antes na configuração subjectiva de espaços significantes, já que a palavra poética é, para Fiama, como já se vislumbrava nos seus companheiros de 1961, embora de maneiras distintas e sempre por caminhos próprios, uma forma reversível que liga espaços distintos, de naturezas, tempos e localizações diversas, e a poesia «um espaço de transfiguração da experiência», como acentua Fernando J.B. Martinho, num ensaio recente [8], que intertextualmente dialoga com espaços alheios. Apesar do peso da imagem na poesia de Fiama – peso que se faz sentir desde cedo, como decorre da insistência com que a crítica têm acentuado a importância do primeiro poema de Morfismos, «Grafia 1» que, entre muitos outros, se tornou famoso na circunscrita família dos que se interessam por poesia –, não se encontrará nela qualquer captação impressionística, antes ressaltando a «formatividade» que já acentuei. O trabalho poético, a densidade do fazer, não afasta a irradiação do olhar que subjaz a estes poemas e que imprime, por vezes, à realidade uma aura que as palavras acolhem na cintilação com que os habitam e que, de certo modo, se relacionam com a serenidade a que já me referi como uma característica essencial do olhar poético de Fiama, que mede e reflecte o longo caminhar histórico entre paisagem e poesia ou, mais extensamente, entre paisagem e representação, chegado que foi a um ponto crítico desse percurso que contesta a perspectiva e o papel do sujeito na organização dos dados da paisagem, bem visíveis em livros como Visões Mínimas, Natureza Paralela, Âmago I e Três Rostos (Âmago II), que exemplifico com o poema «Sob o Cedro», de Visões Mínimas (1968-1974): «Estou no auge da fase calma/de pensar a tua inexistência./ As imagens que me envias/ conseguem embriagar-me./ Um cedro que não necessita de/ mim senão para as ramifi-/ -cações se manterem aéreas./ Vou devagar suster nos braços/ a impiedosa sombra lírica [9]» As palavras Calma e embriaguês dão aqui nota do complexo lance fenomenológico da consciência como experiência total, acolhendo o diverso como uma vibração íntima. Rosa Maria Martelo, refere-se a isso utilizando a palavra «deslumbramento» [10], palavra que remete para a turvação, o assombramento de que eclode o impulso lírico que, sem quaisquer derrames desnecessários, encontramos na base da escrita poética de Fiama. Esta confluência de dissemelhanças em que se funda o poema que, no fundo, este encontro momentâneo de espaços e tempos impossíveis, é uma experiência da brevidade que a consciência procura captar através de imagens-fantasma. O poema tem vidas infinitas, mas todas elas fugazes, e daí a obra «breve», não na extensão, mas na intensidade das suas múltiplas e infindáveis vidas. A aceitação dessa brevidade faz do poeta um descobridor de «áreas brancas» e faz da poesia «o modo mais sereno de habitar.»
NOTAS
1. Neste sentido, Armando Silva Carvalho, poeta da geração de Fiama, distinguia o uso e o abuso (título de um dos seus livros), pondo em evidência precisamente a diferença entre o estereótipo e a manipulação criativa da palavra.
2. María Zambrano, Algunos lugares de la poesía, Editorial Trotta, Madrid, 2007, pp. 70-71.
3. Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve, Assírio & Alvim, Lisboa, 2017, pp. 479-480.
4. Op. cit., p. 37.
5. Idem, p. 463.
6. Gastão Cruz, A Vida da Poesia – Textos críticos reunidos, Assírio & Alvim, Lisboa, 2008, p. 286.
7. Alexandre Pinheiro Torres, Poesia: Programa para o Concreto, Editora Ulisseia, Lisboa, 1966, p. 113.
8. Fernando J.B. Martinho, «Texto e contexto de “Poesia 61” num quadro tardo-modernista» in Colóquio Letras, 177, Março-Agosto, 2011, p. 19.
9. Obra Breve, cit., pp. 197-198.
10. Rosa Maria Martelo, Em Parte Incerta – Estudos de poesia portuguesa moderna e contemporânea, Campo das Letras, Porto, 2004, p. 182.