Desde Baudelaire, pelo menos, que o sabemos. A cidade é a ecologia do poeta moderno. Uma parte considerável da grande poesia escrita ao longo dos últimos cento e sessenta anos (desde a publicação da primeira edição de Les fleurs du mal, 1857) é uma resposta a essa criação prodigiosa que é a cidade, ou, a sermos precisos, a grande metrópole, a fourmillante cité.
Mas talvez a cena baudelairiana primordial seja aquela que vem até nós via «Perte d’ aureole» (xlvi, Le spleen de Paris), poema escrito em 1865 e cuja publicação foi rejeitada pela imprensa, para vir a ser publicado só após a morte de Baudelaire. Aí, nesse magnífico poema em prosa muita coisa parece acabar, sugerindo-se um universo radicalmente novo, de onde a poesia não soube escapar senão em condição de remorso. Uma perda de inocência é assinalada. O Deus de Baudelaire falha, precipita-se no vazio macadamizado da modernidade.
O apocalipse do poeta faz convergir o alto e o baixo, a arte e o ordinário naquilo que este tem não apenas de comum, mas também de vil, de sórdido. La fange du macadam. O «lodo do macadame», ou para sermos menos literais, «a imundície do macadame», haveria de constituir a imagem perfeita da situação moral e estética moderna, exigindo a recomposição integral das formas e dos gestos e a tomada de consciência do fim dos paroquialismos e da emergência da sensibilidade cosmopolita que a designação de «literatura do mundo» captaria.
O caos em movimento será também outra das traduções hábeis a reter de la fange. A posição do poeta é agora difícil, talvez impossível. Ele procura sobreviver a esse caos em movimento onde tudo o que é sólido se dissolve no ar, para usar a célebre frase de Marx mas também de Marshall Berman. Como responder? Só um talento irónico, desmedido, e simultaneamente lúcido, poderá escapar às forças luciferinas que a história corporiza agora.
Toda a poesia do século XX é uma resposta ao apocalipse que a cidade corporizará. E a poesia portuguesa não terá sido imune a esse fluxo de destruições. O livro de Cesário Verde, de 1887 (também ele publicado postumamente), epitomiza essa cidade nocturna, suja e tecnológica. Essa cidade de Lisboa iluminada a gás desde 1848, sofisticada e mundana, onde se iluminam os teatros e onde se bebe absinto, o néctar dos decadentes, e onde os pobres e os impuros irrompem pelo poema como irrompem pelas ruas.
Nesses «nebulosos corredores» da cidade, o poeta, qual etnógrafo, detecta os sinais de uma nova sensibilidade, mas também do que insiste em perpetuar-se como a realidade polimórfica da humanidade. «E, enorme, nessa massa irregular / De prédios sepulcrais, com dimensões de montes, / A Dor humana busca os amplos horizontes, / E tem mares, de fel, como um sinistro mar!», escreverá Cesário na última estrofe do seu «O sentimento dum ocidental».
Assim, é sobre o poeta na cidade este número duplo (39/40) da Relâmpago. Aqui celebramos e pensamos a relação entre a poesia e a cidade. De que forma é que ambos os termos se tornaram coincidentes para expressar a nossa modernidade? E que expressão é que essa modernidade, onde a poesia e a cidade coincidiram, teve e continua a ter na poesia portuguesa, pós-Baudelaire e pós-Cesário?
Aos ensaios, juntam-se poemas e poemas traduzidos, e aos poemas juntam-se ainda as habituais recensões.
LUÍS QUINTAIS
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