COMO SER INFELIZ
Estas perguntas partem de princípios que se querem representativos da galáxia poesia – excelência da poesia sobre a não poesia; inovação e centralidade das vanguardas como metro-padrão, exibindo como indício de ouro a “intensificação” do discurso; debilidade da recepção crítica por contraste com a vitalidade da produção; essa vigorosa enteléquia sempre a pairar sobre o tema – o proclamado número elevado de leitores de poesia; e, finalmente, a poesia no futuro, a da comunidade por vir (virá ou não?, se vier dava jeito que não tardasse)...
Tudo isto são pressupostos que poderiam ser desmontados, dependendo, como sempre, do ponto de vista do agrimensor.
Eu, pequena agricultora chegada tarde e talvez pela porta das traseiras (como sói insistir-se em lembrar-me), só posso ir atirando umas achas para a fogueira e manter aceso o infindável e talvez não-assim-tão vital debate. Na verdade, não estou certa de estarmos a discutir algo de muito importante, mesmo para quem acha tudo isto de uma enorme importância. Talvez até nem saiba responder, mas sei ler o longo e árido primeiro parágrafo e fico quase sem fôlego para pegar na câmara e recentrá-la noutra direcção. Vou tentar com o meu melhor humor que é, a acreditar nos que me rodeiam, quase sempre péssimo.
Poderemos falar da crítica como um certificado da escrita e podemos falar da crítica como um espectáculo montado para orientação do público. Correm os dois discursos em canais separados: um para os que estão preparados para a cultura e outro para os leitores que se limitam a sobreviver cambaleando prosaicamente entre o supermercado e as finanças (infelizmente, cada vez mais gente se limita a este percurso concentracionário).
Em qualquer dos casos, sinto que a crítica não deixa de ser (poderá em algum caso deixar de sê-lo?) o discurso do amo e impõe-se como tal neste país. É um país pequeno em todos os sentidos, já sabemos, mas ainda assim um país. Quero com isto dizer que ofertar aos outros a justificação da miséria ou a glorificação da mediania não faz a existência da crítica. Seria necessário mais um golpe de asa. Muitos golpes e muitas asas.
Eu só publiquei um livro de poesia que ainda está quente a sair do forno, mas pude já confirmar o que vejo de há muito como leitora: boa parte da crítica não critica. Papagueia dois ou três motivos lançados à deriva e repetidos até à exaustão. Ainda direi dupondianamente mais: boa parte da crítica não lê. Não lê os livros sobre que fala e, como os Pessoas não abundam, é difícil falar sobre textos só entrevistos. É a crítica da entrevista. Entrevistam-se de vez em quando os autores e tenta-se arrumá-los por gerações ou por leitarias (até por grupos a favor ou contra o acordo ortográfico – e esta é das melhores...) e entrevistam-se os livros que mal se abrem e se voltam a fechar em tempo record. Deve ser a isto que se chama ler em diagonal. E eu que, ingenuamente, julgava que era ler em posição diagonal, na cama...
Poucos escritores fazem crítica e, quando tal ocorre, nota--se, no geral, a diferença de respiração: é outro sentir, outra serenidade, outro saborear do texto. A minha questão não é o horror, a resistência à teoria: a teoria na sua cinzentice própria é um estímulo, é mesmo um afrodisíaco do texto, a questão são os parasitas da crítica literária, os entrevistadeiros – no sentido que apontei em cima, o de entrever o texto ao longe e no-lo fazer acenar como um oásis distante que se suspeita ter alguma sombrinha, mas à qual não há meio de chegarmos com um penhasco seco, fero e estéril de permeio.
Neste panorama algo esquizofrénico, há, sem dúvida, quem leia efectivamente e escreva de modo a que um maior número de pessoas tenha vontade de ler os livros avaliados – pois disto, de avaliar, se trata. Não são muitos os bons avaliadores e não vou fazer listas. Cada um terá as suas. Parece-me é que nos jornais generalistas com ou sem suplemento literário (que digo eu?! literário?! suplemento multimédia, quando muito...) não caberão resumos da obra de leitura integral nem tentativas de aulas de teoria da literatura. Qualquer destas mais ou menos meritórias actividades, uma na infância da crítica e outra da sua idade adulta, deveria ver a luz do dia algures que não nos espaços onde o leitor médio ou candidato a tal busca orientar-se na profusão publicatória que nos inunda todas as semanas.
Portanto, e ainda que em três penadas injustas, precipitadas, intempestivas, lapidares (que às vezes é a única forma de desenredar assuntos espinhudos), quanto a crítica, estamos conversados para o momento.
Não retirando a importância da centralidade das vanguardas do século XX, lembraria que em todas as vanguardas houve nostalgia e retaguarda e em todas as correntes nostálgicas houve inovações. António Nobre, como creio dizia Sena, a mais histérica das nossas poetisas, por entre as lamúrias afadistadas do seu novecentismo conservador, deixou escapar inovação até na ortografia (convenção esta, repito, que tanto parece incomodar as boas e não-tão-boas-assim consciências filológicas requentadas em micro-ondas).
Não sei se o público ledor de poesia se terá alterado muito. Haverá talvez mais leitores de poesia tal como há mais leitores de ficção. Há mais gente a saber ler, funcionalmente falando. Mas tal aptidão não faz leitores, como sabemos. Este maior número de leitores lerá melhor? O que é ler melhor? Noutros domínios, haverá mais leitores de obras de divulgação científica? E de filosofia? Desconfio que não. De teoria literária? E serão mais, a partir de quando? Outra pergunta falaciosa. Os editores é que poderão dizer. Mas os editores frequentemente fecham-se em copas e quantas vezes e quão humanamente em copos... Quem esgota as edições bloqueadas como os impressos das finanças do Herberto Helder? Esses misteriosos, silenciosos milhares de leitores, lê-lo-ão? Não conheço muitos leitores de poesia. Alguns compradores sim e, desconfio, menos, muito menos, leitores. Mas eu conheço, sobretudo, gente comum que não compra revistas literárias. Provavelmente essas pessoas não contam para as estatísticas da bem-aventurança da poesia.
Outro dado curioso: ao que parece, há mais homens do que mulheres a ler poesia, mas ultimamente, dizem, aparecem umas “senhoras” a escrever e a avançar quais amazonas neste campo de batalha – tenho ouvido estas expressões num mix de vox populi e de vox intelligentiae.
Em suma, e porque o tempo se esvai, as perguntas deste inquérito e as suas possíveis, múltiplas, traiçoeiras respostas ou esquivanças poderão ser lidas como manifestações, mais ou menos estéticas, da melancolia literário-teórica. Ou mais um modo outonal e tépido de como ser infeliz. |