O ESPELHO EMBACIADO DO VERSO
EM IRENE LISBOA*
Em Novembro de 1992, no âmbito de um colóquio dedicado a Irene Lisboa, por ocasião das celebrações do centenário do seu nascimento, tive oportunidade de me debruçar sobre Um dia e outro dia…, livro que punha em confronto com dois outros de poetas da sua geração cultural, Régio e Torga, que tinham igualmente constituído acontecimento no ano de 1936, As encruzilhadas de Deus e O outro livro de Job, respectivamente. O texto da minha intervenção naquele colóquio veio a lume, sob o título “1936 – um ano a três vozes: Régio, Torga e Irene Lisboa”, no número que a Colóquio/ Letras (nº 131, Janeiro-Março de 1994) dedicou à autora de Solidão. Não entrei, então, em linha de conta com Outono havias de vir, livro dado à estampa em 1937, por estar já fora do âmbito temporal que definira para o meu artigo. Chegou, agora, o momento de fazer incidir a minha atenção sobre a segunda colectânea poética de Irene Lisboa.
Trata-se de uma obra muito diferente da que, imediatamente, a antecedeu. Um dia e outro dia…, atribuído a João Falco, apresentava-se como “Diário de uma mulher”, e, embora em verso, integrava-se genologicamente, sem dificuldade, no âmbito da escrita diarística. Outono havias de vir, igualmente atribuído a João Falco, não se afastava do modelo das recolhas poéticas formadas por poemas individuais ou sequências poéticas, com títulos próprios. Tal circunstância não implica que esteja ausente do livro também uma unidade, já não tanto, porém, no plano formal quanto no plano temático, como, pelo menos, o título logo indiciava.
Era este um título que transportava consigo uma forte emotividade, o que, de imediato, o diferenciava do registo neutro do título do livro seu antecedente. Com efeito, ele expressa, com veemência, a insatisfação da poeta perante a situação presente e o desejo de uma mudança, centrada numa precisa estação do ano. O título completo do volume (Outono/ havias de vir/ latente/ triste), habitualmente amputado das suas duas últimas palavras, em termos de referência bibliográfica, encarrega-se, aliás, de sublinhar uma outra dimensão do estado de espírito que vai presidir a toda a colectânea: o comprazimento do sujeito na melancolia, na sua tristeza.
Na abertura do livro, chamava-se, de um modo não inteiramente isento de provocação, a atenção para a forma discursiva usada nos poemas que o constituíam, um «verso» que, para alguns, estaria mais perto da «prosa» do que propriamente do discurso versificado: «Ao que vos parecer verso chamai verso/ e ao resto chamai prosa». O que na frase haverá de provocatório tem sobretudo a ver com a indiferença da poeta perante a designação que o leitor possa atribuir à forma discursiva utilizada. Se no livro anterior aquilo que tínhamos era um recurso total ao verso livre, o que, agora, há de novo é uma chamada de atenção para a forma escolhida, susceptível ainda de provocar, à época, dúvidas no espírito do leitor menos informado sobre as transformações operadas nas formas poéticas a partir do simbolismo. Subjacente às palavras de Irene Lisboa, está a sua assumpção plena do verso livre, como a forma mais adequada para a expressão dos seus sentimentos e emoções, que a poeta não quer submetidos «ao artifício da composição sintác-/ tica e métrica», como deixará dito num dos mais emblemáticos textos do livro, “Escrever” (Lisboa, 1991: 300-301).
Na magnífica nota crítica a Um dia e outro dia… e Outono havias de vir que publicou no nº 50 da presença (Dezembro de 1937), refere-se José Régio à «influência» que teria tido na «libertação do nosso verso moderno» Adolfo Casais Monteiro, deixando implícito que o poeta de Confusão e Poemas do tempo incerto teria sido um dos modelos para as inovações trazidas pela própria Irene Lisboa. Difícil se torna não aceitar a sugestão lançada por Régio, que tem, de resto, o cuidado, no confronto que estabelece, logo a seguir, entre os dois poetas, de pôr em evidência o que os diferencia, fazendo ressaltar a originalidade de Irene Lisboa: «Mas os versos livres de Adolfo Casais Monteiro cantam cada vez mais de intrínseca musicalidade. Os de João Falco, raramente. Às vezes, são gritos; ou pedradas; ou reticências; ou onomatopeias; ou repetições; ou como frases inacabadas; ou pura prosa, e áspera; etc.» (Régio, 1977: 216- -217). O autor de Poemas do tempo incerto não é, porém, bem vistas as coisas, senão um dos vários poetas que, nas décadas de 20 e 30, dão um contributo importante para a imposição do versilibrismo no âmbito da tradição modernista iniciada pelo Orpheu. Outros poetas no grupo da presença poderiam citar-se por uma prática radical do verso livre, como, por exemplo, para não ir mais longe, António de Navarro, sobretudo enquanto autor dos poemas precisamente dados à estampa na revista. O grande exemplo ter-lhe-á, no entanto, vindo de Pessoa, que Irene Lisboa teve ensejo de ler «disperso» na «folha de arte e crítica» de Coimbra (onde, como é sabido, colaborou com frequência) e noutras publicações abertas ao modernismo em ascensão. Da sua admiração por Fernando Pessoa deixou ela expressivo testemunho nas páginas de Apontamentos, de 1943 (Lisboa, 1998: 111-116). E, em relação à prática do verso livre, terá a poeta certamente acompanhado com particular atenção alguns dos textos de Campos e Caeiro que Pessoa foi dispersando, ao longo dos anos, por revistas e jornais. Neles terá, sem dúvida, reconhecido «a linguagem afinada e individualizada» que via como «último e mais perfeito bem do poeta» (cf. ibid.: 112). E não custa imaginar a concordância que lhe teriam merecido, se as pudesse ter lido, as palavras que Pessoa escreveu sobre o ritmo praticado por Caeiro e Campos, ao qual deu a designação de ritmo paragráfico (in Poemas Completos de Alberto Caeiro, 1994: 271-274), e que se distinguia essencialmente pela recusa de «tudo quanto é artificial no verso – a rima, o metro, a estrofe», e que, quanto a limites, apenas aceitava os que ele deixou consignados no mesmo texto: «O limite que temos é a nossa personalidade: é o sermos nós e não a vida inteira. É isso o limite dentro do qual temos que trabalhar, porque não podemos trabalhar fora dele. E, para limite, basta esse.»
Curiosamente, a maior parte dos versos que Irene Lisboa citava, nas páginas de Apontamentos dedicadas a Pessoa, pertenciam, não aos dois heterónimos que lhe serviram, em larga medida, de referência no exercício do versilibrismo, mas ao ortónimo, que, como é sabido, cultiva quase exclusivamente o verso regular. Não se torna, no entanto, difícil descortinar as razões que a levaram a privilegiar o Pessoa ele-mesmo nas citações que fez. No seu pendor melancólico, nas suas «mais desencantadas frases», no seu «amargor lírico» (cf. Lisboa, 1998: 112), reconhecia ela alguém da sua própria família. Idênticos motivos, aliás, a levavam a sentir-se próxima de Camilo Pessanha, da sua «aguda poesia» (cf. ibid.: 116), e não eram tanto, porventura, a variedade e a «dissonância das cadências» (cf. Martins, 1969: 326-329) dos seus versos que lhe interessavam. O que, antes, a parecia atrair no autor de Clepsydra era o que pressentia de «alma/ despolarizada, infeliz» no seu verso, como deixou dito num poema de Outono havias de vir (Lisboa, 1991: 337-338), aquilo que se assemelhava à «amargura», reiterada, de que, aí, fala, à pulsão de morte que, então, a submerge («Que vontade de morrer, de fugir, de chorar!»). Irene não permanecia, todavia, surda ao fascínio dos sortílegos ritmos de Pessanha, como se pode ver num fragmento dos Versos Amargos citado por José Gomes Ferreira, na “Breve introdução à poesia de Irene Lisboa”, que Paula Morão dá a conhecer na edição que organizou de Poesia I (ibid.: 19): «Vou de ombro com os poetas novos./ Mas sempre com uma saudade,/ tanta!/ daquele idealismo,/ daquela elegância e irrealismo/ do Camilo Pessanha.» Essa «elegância», nunca deixou ela, a bem dizer, de a perseguir, e Régio, no contraste sem grandes nuances que estabeleceu entre a poesia de Irene Lisboa e a de Casais, a do Casais, afinal, tão abertamente tentado pelos atonalidade, não teria inteiramente razão. Veja-se, por exemplo, o deslumbramento que nela suscitam «o ritmo da forma/ e do pensamento…», o «luxo sóbrio e correcto» das «imagens», os «símbolos», a substância «musical» dos versos de um autor não identificado, objecto de exaltada releitura, em Um dia e outro dia… (ibid.: 113-115). A radicalidade das opções formais da poesia de Irene Lisboa, a pulsão destrutiva que a percorre, e que levaram José Gomes Ferreira a aproximá-la, com notável perspicácia crítica, do dadaísmo (ibid.: 19), não implicam, todavia, de modo algum, o apagamento da tensão que, na grande arte, se mantém, não raro, por resolver entre a ordem e a aventura (cf., a propósito, “La jolie Rousse”, o famoso poema de Apollinaire, 1962: 161-163).
Outono havias de vir inicia-se sob o signo da «monotonia». Perante a palavra convocada para o título do texto de abertura do livro (1991.: 285), experimenta a poeta sentimentos contraditórios. Por um lado, ela dá expressão ao «cansaço» e à «pobreza» do seu «viver» repetitivo, sem horizontes, «sem qualquer/ esperança». Por outro lado, descobre nela uma fonte de sabedoria, algo que lhe traz «a arte da verdade,/ a pobreza e a constância.» Quando no fecho do poema a poeta se lhe dirige, é como se, à maneira de Reis, lhe estivesse a pedir a indiferença, a ataraxia dos gregos: «Monotonia, torna-me desinteressada.». A monotonia de que amargamente se queixa, e que lamenta, no princípio, acaba por aceitá-la com resignação, por nela, afinal encontrar uma lição de vida. Tal apaziguamento não oculta, no entanto, o dramatismo com que é experienciado o sentimento inicial, e ele não se apaga, como a repetição de formas não flexionadas do infinitivo dos verbos, de adjectivos e advérbios se encarrega de lembrar. Logo neste poema inaugural, Irene Lisboa vai pôr em jogo uma inovação rítmica de que ainda não lançara mão no livro anterior. Não lhe basta já o enjambement enquanto marca da incoincidência entre a pausa métrica e a pausa semântica; vai muito mais longe e faz incidir a pausa numa sílaba que separa do resto da palavra a que pertence, como em «in-sistir» e em «chã-/ mente». É, afinal, um modo de ela sublinhar a importância que atribui aos efeitos rítmicos na realização do poema enquanto objecto artístico.
O sentimento que domina o poema seguinte (ibid.: 286) traz igualmente consigo a carga da negatividade: a «inquietação», o «desassossego», convocado, aliás, para o título. Esse sentimento estivera já no centro de alguns trechos em prosa, atribuídos quase exclusivamente a Bernardo Soares, que Pessoa publicara em revistas de que Irene Lisboa poderia ter tido conhecimento, nomeadamente na presença, e que num ou noutro caso não andavam muito longe das próprias prosas que, subscritas por Irene, ela dera a lume na «folha» de Coimbra. [Entre parênteses, se esclareça que Irene Lisboa publicou ainda na presença os seguintes trechos: “Bagatelas”, um conjunto de 4 textos atribuídos a Mara, no nº 47, relativo a Dezembro de 1935, no primeiro dos quais deixa clara a sua aproximação à «literatura de introspecção», ou seja, a praticada então maioritariamente pelos «presencistas», e que, em sua opinião, poderia, ou deveria, empenhar-se numa renovação das «formas verbais», do «estilo da linguagem escrita», e «derrubar» o «academismo» desta, «a sua correcção lógica»; 5 fragmentos, sob o título de “O que aponto”, subscritos por João Falco, no nº 50, de Dezembro de 1937, e em que, às vezes, bem ténue se apresenta a fronteira entre a prosa e o verso; e “Três trechos do livro Solidão”, igualmente assinados por João Falco, no nº 53-54, referente a Novembro de 1938.] Mas, aqui, o que o texto põe especialmente em evidência é um traço muito característico da sua poesia: a combinação do «desassossego» interior com uma inquieta movimentação ou deambulação perceptiva. A poeta dá conta, com verdadeira minúcia fenomenológica, das mudanças que vai percepcionando no mundo exterior que a rodeia. A percepção que ela, na circunstância, põe em jogo é a percepção visual. Os «olhos», na sua movimentação circunvagante, detêm-se em pequenos objectos do mundo doméstico, uma «chapinha circunflexa», um «sapatinho», uma «meiazinha de criança», «uma moeda redondinha», que transfiguram, num exercício em tudo semelhante ao do pintor impressionista diante do fragmento de realidade que escolheu para objecto de representação. Tal como na pintura impressionista a «luz» é o factor decisivo, fautor também de indeterminação que pode chegar à própria dissolução do objecto: «Agora é uma moeda redondinha./ Cada vez mais pequena./ Luz e forma sempre nova…/ Agora é só uma dedada, some-se./ Agora mais nada.» (De um modo semelhante ao que Daniel Bergez faz a respeito de uma aproximação entre Verlaine e os impressionistas, poderíamos dizer que em Irene Lisboa, no caso em apreço, «é a própria realidade do mundo material que se dissolve num universo vaporoso e ondulante das sensações», Bergez, 2004: 31). Mas, como acima ficou dito, há no poema uma combinação do mal-estar que abala interiormente o sujeito e das impressões que o mundo exterior nele vai suscitando, e, nessa tensão, é o «desassossego», convocado, não por acaso, para o título do poema, que acaba por prevalecer: «Mas de si que deixará esta minaz luta, este de-/ sassossego?/ Cansaço e severidade.»
A «elegância» da poesia de Camilo Pessanha, como vimos, sempre atraiu Irene Lisboa. O desejo, mais propriamente do que a nostalgia, de «um belo verso./ Sonoro, elegante, correcto, de mármore!» (cf. ibid.: 287), nunca, a bem dizer, a abandonou. Mas então em que ficamos? Não manifestava ela, um pouco à frente do poema acabado de citar, “O belo verso” (ibid.: 287-288), no conhecidíssimo “Escrever” (ibid.: 300-301), o propósito de dar a «cada palavra» a rijeza, a secura da palavra «irressonante, sem música./ Como um gesto, uma pancada brusca e sóbria.»? O novo é sobre o velho, se acaso são estas categorias absolutas, que se constrói, e, como Pessoa fazia questão de salientar, a «novidade, em si mesma, nada significa, se não houver nela uma relação com o que a precedeu. Nem, propriamente, há novidade sem que haja essa relação.» (1966: 390-391).
O sujeito toma, no entanto, consciência do desajustamento, da inadequação entre o verso belo que ouviu a um poeta e a que aspirava e a sua própria emotividade fácil e a manifesta insegurança da sua voz: «Estes olhos que sem querer se envidraçam, fúteis,/ sem recato, infantis, esta voz insegura, enfim,/ tudo isto…/ Que figura iriam fazer dentro de um verso ele-/ gante, lapidar?» A poeta entrega-se, então, a um impiedoso exercício de auto-depreciação, tão comum nos modernos, torturados pela ideia de fracasso, de falhanço. Irónica e paradoxalmente, porém, o poema irá encerrar com a valorização do verso próprio, do seu «nada», erguido à condição de coisa elevada: «Meu velhíssimo verso falhado, meu, não o dos/ outros…// Com que te haveria eu de ilustrar?/ Com que te encher, meu divino, lúcilo, aéreo,/ palavroso poema do nada?»
Não por acaso, foi o poema “Escrever” (ibid.: 300-301), aqui, referido mais do que uma vez. É que ele é uma proclamação orgulhosa da diferença ousada que representa a escrita poética modernista. Percorre-o o desejo intenso de quebrar com o que há de «artifício», de respeito por regras sem vida, de retórica oca, de «arredondado linguístico» na poética convencional. E é com inequívoca violência que Irene Lisboa faz a sua defesa do verso livre dos modernistas: «Para quê o arredondado linguístico?/ Gostava de atirar palavras./ Rápidas, secas e bárbaras, pedradas!» Percebe-se, por versos como estes, que ela não esqueceu o feroz ataque às «artes poéticas» convencionais levado a cabo por Adolfo Casais Monteiro alguns anos antes nos seus Poemas do tempo incerto: «Procura sempre aquilo que te ofenda,/ o ritmo sem ritmo, a palavra rude,/ e deixa que outros façam pitagóricos/ equilíbrios de sons, ideias e sentidos.» (Monteiro, 1993: 51). Mas, tal como Casais no seu poema se mostrava, contraditoriamente, fascinado por uma certa regularidade métrica, Irene, na segunda parte do seu texto, parecia também expor-se à contradição, ao confessar, em clara «oposição com a braveza do jogo da/ pedrada», o «desejo» de «escrever com um fio de água», de, nele, no seu fluir «humilde e tranquilo», se dispersar e anular. O desejo de diluição, de deixar o nome escrito no heraclitiano fluxo da água parece, afinal, sobrepor-se a tudo o mais, na modernidade que vem de Keats, das palavras gravadas no seu túmulo (cf. as palavras que, por vontade do poeta, foram inscritas na sua pedra tumular, no Cemitério Protestante, em Roma: «Here lies one whose name was writ in Water», Bush, 1966: 200), e passa pelo Pessanha, de que Irene se sentiu sempre tão próxima.
Já numa das páginas do «diário» que Um dia e outro dia… (Lisboa, 1991: 147-148) pretendia ser, a poeta assumia, veementemente, o desafio da sua escrita «sem compostura», e negava, com orgulho, «a arte de escrever» baseada na «medida» e no «senso estético». Não era como «artista» que se via, como simples embelezadora de «ficções»; antes, e «apenas», como um «ser humano/[…]/ desgostoso e maltratado» se encarava. Mas tais proclamações, com a nitidez e dureza com que se apresentam, raramente prescindem da interrogação. O poeta é, em Irene Lisboa, um ser eminentemente interrogante, inquieto, sem certezas fáceis: «Mas…/ artista é só aquele/ que cria ficção?/ Artista não é também/ o que põe num plano justo/ e claro/ uma razão?/ É…». E o que ela faz, como diz, mais uma vez sob forma preferentemente interrogativa, na estrofe de fecho do poema, não é «senão correr/ atrás de mil razões,/ com mãos inquietas/ que as não fixam». O verso final, na sua clara opção exclamativa («Não, não sou artista!»), só na aparência faz prevalecer a vida sobre a arte, o «ser humano» sobre o artista. O ela equiparar-se aos «desatinos» e «correrias» dos «animais bravos», o aspirar a «uma alma asselvajada» (cf. ibid.: 296) não significa que não seja sensível às «sensações subtis» (cf. ibid.: 340), ao desejo irrecusável de «elegância» (ibid.: 148) que o fazer da «prosa» (ibid.: 147) verso necessariamente implica.
Atribui-se, por outro lado, na poesia de Irene Lisboa, uma grande importância aos dados sensoriais, sobretudo aos da visão. Pode, assim, a poeta dizer com a maior naturalidade: «Os meus olhos nasceram para ver.» (ibid.: 294-295). Nota-se isso não apenas no gosto pronunciado da sua poesia pelo descritivo, pela criação de quadros, mas também na tendência para aproximar, de múltiplos modos, o poético e o pictórico, e para falar de «pintores». Se os seus olhos nasceram para ver, os seus textos parecem, frequentemente, ter nascido para dar a ver. A realização da ekphrasis, parece, nela, coisa sem esforço. Com pinceladas mais soltas ou mais minuciosas, faz surgir o quadro. Atente-se neste que ela intitulou de “Tarde santarena” (ibid.: 298), com sugestões impressionistas, nas mudanças de cor e luz do «Sol Posto»: «Aqueles dois barcos em baixo./ Senhores do rio, tão tranquilos!// O rio plano, sem margens./ Com bordaduras de terra apenas.// Terra verdadeira… é isto!/ A água atravessa-a, não a invade./ Dois barcos ali por acaso.// Sol Posto./ Sobre a água barrenta e luminosa, que bem ficam/ aquelas duas velas torcidas, vermelhas, a meio…/ Movem-se./ Mudam de lugar sem que o notemos quase.» Mas a aproximação à pintura, pode servir-lhe também para fazer a apologia das pintura nova numa época em que ela cada vez mais se demarca do academismo, na sua atracção pelo movimento, pela irrealidade, pela estranheza das combinações e no gosto pelo «radioso» e pelo «inesperado», em clara contraposição à banalidade e ausência de fantasia da pintura académica (cf. “Pintores”, ibid.: 291). A poeta não tem telas, mas a sua relação com o sol e a luz é de idêntico tipo à dos pintores novos: registar, no seu caso, com palavras novas, originais, a variabilidade radiosa do mundo exterior.
A poeta debruça-se sobre o real, vê, observa; o seu olhar não é, todavia, neutro. Não deixa de se interrogar sobre o sentido do que faz quando descreve, e pinta com palavras o mundo que se lhe oferece ao olhar. Há, nela, um ponto de vista, que pode, inclusive, turvar-se de cores críticas, se não mesmo de fundos assomos de má-consciência, de sentimentos de culpa. Afinal aquilo que, para ela e para outros que podem dar-se ao luxo de contemplar a beleza dos lugares antigos, pitorescos, para os naturais, mais não é que miséria de terra pobre, «sáfara». Esse mal--estar ganha especial acutilância na estrofe que encerra o poema motivado por uma visita a Idanha-a-Velha (ibid.: 302-303): «Eu passo, gozo./ Os outros ficam./ Para eles não há terra bela, pictórica, arqueoló-/gica, poética, histórica./ Há terra sáfara.» A poeta que, entre as tradições que na sua obra confluem, não enjeita a tradição realista, apostada, como está, em «dizer sensível e objectivamente» o «mundo e os «lugares», nunca terá estado mais próxima de ser tida como precursora do neo-realismo que, então, ensaiava ainda os seus primeiros passos, como no quadro de intenso dramatismo que nos deixou de uma passagem pelo Alentejo, no segundo texto do díptico com esse título (ibid.: 318-319): «Andam os segadores, os Campaniços, como por/ cá dizem, à espera de que os chamem./ Pobretões, secos, remendados!/ Enchem o mercado, espalham-se pelas ruas./ Ano de chuvas, tardias as ceifas.// […]». A Manuel da Fonseca (cf. artigo do A., no nº 6 da revista Nova Síntese, de 2011: 37-53), designadamente, em vésperas de publicar os seus dois livros de poemas de ambiência alentejana que irá povoar de personagens também eles marcados pela «pobreza», malteses, ganhões, campaniças, e outros, não terá, porventura, passado despercebido o segundo poema do díptico “Alentejo”, ademais tratando de um tema, o da oferta pelos trabalhadores sazonais dos seus braços em largos de vilas e aldeias de terras transtaganas, que se irá tornar cena quase obrigatória de muito romance passado naquelas paragens. Curiosamente, a última estrofe do segundo poema do díptico regista uma alusão bíblica, não muito comum na poesia de Irene Lisboa, que, por aí, igualmente se diferencia da de dois seus companheiros de geração cultural, Régio e Torga. Diz essa alusão respeito a Rute, afortunada no seu trabalho de ceifeira (Livro de Rute, capítulos 2-4: 380-382), contrariamente aos «deserdados» «campaniços» em quem a autora de Outono havias de vir faz incidir o seu olhar compadecido: «Campaniços, campaniços!/ Soa-me a barro esta palavra e a pobreza./ Por ela não entrevejo a simbólica Ruth nem as/ loiras searas./ Campaniços!/ Deambulatórios filhos da terra, famintos e deser-/ dados.»
Mas o que acaba por prevalecer na poesia de Irene Lisboa é um eu torturado, absorto na dor dos seus mais íntimos tropismos, que dificilmente se furta ao desejo de diluição numa «indiferença ilimitada» (cf. “Jeito de escrever”, apud Sena, 1958: 90-91). A permanente sondagem a que se entrega dos infinitos abismos interiores faz dela uma autora muito próxima dos «presencistas», que estiveram também entre os primeiros a dar-se conta da sua grandeza.
* O presente ensaio, no qual foram entretanto introduzidas algumas alterações, foi lido, em Dezembro de 2012, na Universidade de Évora num Colóquio subordinado ao tema “A Poesia «diante do espelho: vendo-se, pensando-se»”.
Referências bibliográficas:
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COLÓQUIO/LETRAS, nº 131, Janeiro-Março de 1994 (Voltar a Irene Lisboa).
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