Num momento particularmente confuso da poesia portuguesa, da sua leitura e da sua crítica, o actual, apesar da vitalidade, da qualidade e da variedade que a produção poética inédita inserida neste número, sem dúvida, documenta, o regresso à obra daquela que José Gomes Ferreira considerou “a maior escritora de toda a nossa história literária” (afirmação feita em vida da autora de Esta Cidade!) será, por um lado, uma viagem salutar e, por outro, mais uma tentativa de contribuição para “poupar-lhe a injustiça duma posteridade vagarosa”.
São palavras de Carlos de Oliveira, estas últimas, e com elas termina a pequena crónica “À espera de leitores”, incluída no livro O Aprendiz de Feiticeiro, depois de ter perguntado: “Mas hoje, ultrapassado o desfasamento inevitável a que estão sujeitos os inovadores, por que razão continua Irene Lisboa a não ser lida?”
Irene Lisboa foi, realmente, um dos grandes inovadores da literatura portuguesa dos últimos cem anos e, muitas vezes, a crítica “oficial” (ou que se “oficializa” a si própria) não adere a obras “inovadoras”, preferindo, ou encontrar a “inovação” em pseudo-inovações que por aí se vão agitando, ou aderir a práticas mais conservadoras de linguagem literária, arvoradas em regeneração dos excessos “vanguardistas”.
Chamar para Irene Lisboa, para toda a sua extraordinária obra, a atenção que ela indubitavelmente suscitará em quantos, livres de preconceitos e genuinamente interessados na arte da literatura, decidirem acercar-se de um dos textos em que vida e linguagem mais plenamente e esplendorosamente se fundem, é o objectivo principal deste número de Relâmpago.
Acerca de Irene Lisboa escreveu, em devido tempo, José Rodrigues Miguéis: “Daqui a dez ou vinte anos, quando a mais-valia do tempo tiver definitivamente cristalizado a sua Obra de audácia e reticência, de anseio e pudor, ela será, toda ela, um documento humano de irrecusável pungência e beleza: e nenhuma obra de ficção poderá perdurar mais nem melhor do que as angústias que ela nos faz sentir e adivinhar.”
Passaram, não dez ou vinte anos sobre estas palavras, mas porventura sete ou oito décadas. A obra de Irene Lisboa continua a ser esse “documento humano de irrecusável pungência e beleza”.
GASTÃO CRUZ
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